Dizem que o levaram
Uma carrinha branca
uma ambulância, talvez
dois sujeitos de bata
fortes
careca um
o outro
normal
que é dizer
sem características especiais, boas ou más. O tipo ideal para matar gente em série.
Como quer, ou o que quer que tenha sido, a verdade é que nunca mais o vi por estas bandas. A princípio pensei que tivesse ido pregar para outra freguesia. Afinal freguesias é coisa que não falta em Lisboa
São Miguel; São Cristóvão; Santa Justa…
pois a Palavra tem de ser levada a todos, como a luz do Sol, que até aos cegos chega, ainda que a não possam ver. Sentem-lhe o calor, diferente do da sofagem do carro de praça; do secador do cabelo. Sentem-no e isso é o importante; que a isso se chama fé.
Dizia que nunca mais o vi por estas bandas, e não vi. Daí que talvez o tenham mesmo levado
uma carrinha branca
uma ambulância, talvez
dois sujeitos de bata
fortes
careca um
o outro
ideal para matar gente em série.
Nunca o segui. Acho que por decoro, ou vergonha, que no caso vai dar ao mesmo. Trajava um lençol branco - como todo o lençol deve ser - onde um rasgão criando espaço para a cabeça, por debaixo do qual
não faço ideia
nu, talvez
como no dia do seu nascimento
(não me refiro à nudez; óbvia questão, mas ao lençol)
como no dia do seu nascimento
um rasgão
criando espaço para a cabeça
e lá estava ele, todo de fora. Porque um homem é pouco mais que a sua cabeça, ainda que precise do resto do corpo para o provar. E à volta da cintura, um cordão
umbilical
pois sobre o umbigo
a firmar a vestimenta com a dignidade de um lord inglês do início do século XX a apertar o robe para o breakfast.
E nos pés, uns chinelos de enfiar no dedo
de plástico
mais baratos que os de cabedal
pois não era de ostentações, como outros que houve me tempos. E o que um homem calça nos pés é coisa sem importância, pois um homem é pouco mais que a sua cabeça.
Nunca o segui. Confesso. Com os olhos apenas; o que não é bem seguir. Cheguei a ter vontade. Mas o decoro
a vergonha
vai dar ao mesmo
diziam que era maluco
o que dizem sempre
mas afirmava-se filho de Deus
- Grande coisa! - diziam outros, que também assim se julgavam, já que lho sempre haviam dito.
que se chamava Calisto
lençol e chinelos
de plástico
nos pés
sempre se evita a protectora dos animais à perna
ainda que não os ambientalistas.
Há sempre quem tenha algo a opor, se não for grego será troiano, ecologista ou da ASAE.
Baptizava os fieis no rio, junto à Torre de Belém, que mais a condizer não podia ser. Os turistas achavam-lhe graça e a maioria penava tratar-se de teatro de rua. Uma cidade de artistas; poesia em movimento; criatividade a ao mais alto nível.
- Lisboa? Superbe! Fascinating! Ein Traum! De puta Madre!
- É maluco!
- Oh, non! Pas de tout! An artist! Kann doch nicht sein! Y quién no lo es?
Os fiéis seguiam-no. Cada dia mais. Não fazia milagres. Sabia que o comum mortal não os suporta. Acostuma-se mal. Estava ali para espalhar a Palavra
que tem de ser levada a todos, como a luz da sofagem, diferente da do carro, que o importante é o cabelo e ter cegos na praça. Sentem-lhe a chama do secador ainda que não possam chegar ao Sol, que isso de ter calor é fé.
Não esperava que o acreditassem. Nunca acreditam e cada vez menos. O homem não foi feito para ver e aproveitar aquilo que lhe é posto diante do nariz. É um gato desconfiado. Por isso vive no passado e no futuro. Que o presente é uma coisa indefinida. E se há coisa que o comum mortal quer é as coisas bem definidas. Pois ninguém o há-de tomar por parvo. Olha lá, a quem!
Não garantia ser a mãe virgem. Tinha mais oito irmãos. Três em França, uma na Suiça, dois na Alemanha. Uma em Olival Basto e outro na Moita. Não, virgem não dizia. Os tempos são outros. Até que já nem é coisa que se use; coisa que impeça véus, grinaldas ou raminhos de laranjeira. Isso já lá vai. Até porque, a afirmá-lo, já sabia que rótulo lhe colariam. E juiz era o pai e ele nem sequer um fiscal de linha. Não, não ia nisso. Também ele não era parvo. Ainda que dissessem
- É maluco!
apesar de outros
os estrangeiros
mais viajados; que conhecem mais coisas
- Kann doch nicht sein! Y quién no lo es?
a garantirem
- Oh, non! Pas de tout! An artist!
Estava ali para espalhar a Palavra
não fazia mal a ninguém. Falava do mundo e dos seus problemas
e dos problemas do mundo também.
Mas agora
ao que parece…
levaram-no
uma carrinha branca
uma ambulância, talvez
dois sujeitos de bata
fortes
careca um
o outro
normal
que é dizer
sem características especiais… ideal para matar gente em série.
Os dias que vivemos são complicados. Não sei o que lhe terão feito. Hoje em dia não se podem fazer fogueiras em qualquer lado e já não se crucifica ninguém. Pelo menos de braços abertos. Já atados atrás das costas, isso, acho é válido.
Há sempre quem tenha algo a opor, se não for grego será troiano, ecologista ou da Associação para a Saúde Alimentar e Económica
que pelo que parece também presa a saúde e higiene mental. Felizmente que temos alguém olhar por nós. Os dias que vivemos são complicados… e a verdade é que eles andam aí
malucos
artistas
vai dar ao mesmo
Por isso, quando aquele senhor do colete azul me perguntou se eu conhecia um tal Calisto eu
fechei-me em copas
(que não sou parvo)
e
Não! Calisto? Não, não…
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