Monday, January 28, 2008

… feliz para sempre?

- … e viveram felizes para sempre.

o livro a fechar-se sobre o colo da minha mãe e uma mão terna a passar-me pelo cabelo, antes do sorriso, do beijo na testa, do

- Dorme bem, meu amor!

e então a mão, o sorriso, os lábios da minha mãe e o

- Dorme bem, meu amor!

a sucederem-se, cada um à vez, na ordem do costume, a não defraudarem as minhas expectativas. Com a mamã era “todos os dias igual”; todos os dias tão bom, ainda que o papá

- É todos os dias a mesma coisa contigo! Chiça, penico!

e eu

que não entendia a expressão, nem o desagrado do meu pai

a mirrar-me no meu canto, a montar um cavalinho da Playmobil e a fugir para o meio da quinta, onde o barulho dos animais me impediam de

- É todos os dias a mesma coisa contigo! Chiça…

…penico!

e a voltar apenas quando a porta da rua

Truz

com toda a força

um coice de cavalo na porta do estábulo

Truz

e as escadas do prédio

um, dois

numa obsessão por números

sete, oito

a contarem os passos do meu pai até à porta da rua. Como se do primeiro andar até ao rés-do-chão pudessem crescer degraus do dia para a noite

como se

do dia para a noite

vinte e três em vez de dezoito

ou trinta e um

quarenta e cinco

em vez de

dezoito.

Portanto

apenas quando a porta da rua

Truz

e as escadas

numa obsessão por números

dezassete; dezoito

eu a desmontar-me do cavalo e a aparecer na sala, como se por acaso

- Andava pela quinta mamã, não dei por nada. Saiu, foi? Hum! Pois, não reparei. E a aninhar-me no seu colo, que precisava mais de colo do que eu.

Não sei se à data o não compreendia já, pois entendo que as crianças não são tão ingénuas como as querem fazer parecer. Mas, a não compreendê-lo, a senti-lo, pelo menos

de modo que

a aninhar-me no seu colo

a perguntar-lhe

depois de

- … e viveram felizes para sempre.

da mão pelo cabelo, do sorriso, do beijo na testa e do

- Dorme bem, meu amor!

a perguntar-lhe

- As pessoas quando casam são felizes para sempre?

- Nas histórias sim.

a garantir-me com voz frouxa

- E sem ser nas histórias?

- Às vezes são.

- És feliz para sempre, mamã?

e a minha mãe, que entendia as perguntas das crianças, respondeu-me que

- Sim.

e sorriu, com a expressão de

- Sou tão infeliz, filho! Sou tão miserável, meu querido. Deixa-me dormir contigo, meu amor. Só hoje. Eu juro que não me habituo. Só hoje, meu lindo. Não aguento mais ficar sozinha.

apesar de

- Sim

com o sorrido de

- Não!

E porque a não conseguir dizer-me a verdade

(uma dificuldade que os adultos têm. Alguma função que se atrofia com a maioridade)

a não conseguir

- Sou tão infeliz, filho! Sou tão miserável, meu querido.

tal como para o meu pai

que algures num carrinho da Playmobil às voltas pela cidade

a não conseguir

- Deixa-me dormir contigo, meu amor. Só hoje. Eu juro que não me habituo. Só hoje, meu lindo. Não aguento mais ficar sozinha.

a deixá-lo ir

dezassete, dezoito

dezanove, vinte, vinte e um…

Como se do primeiro andar até ao rés-do-chão pudessem crescer degraus do dia para a noite

como entre o meu pai e a minha mãe

cada dia um degrau mais longe

dois mil quinhentos e trinta e nove, dois mil quinhentos e quarenta…

Não sei se à data o não compreendia já, pois entendo que as crianças não são tão ingénuas como as querem fazer parecer. Mas, a não compreendê-lo, a senti-lo, pelo menos

de modo que

a aninhar-me no seu colo

a receber

a mão terna pelo cabelo, antes do sorriso, do beijo na testa e do

- Dorme bem, meu amor!

na ordem do costume

todos os dias

igual

tão bom

a dizer-lhe

- Dorme comigo hoje, mamã.

porque ela

com o sorrido de

- Não!

a dizer-me que

- Sim!

jamais me pediria

tal como ao meu pai

para ficar

…para sempre…

1 comment:

Anonymous said...

Nossa, esse é um dos melhores textos que já li na internet.

Parabéns!