Esta é uma carta… não. Esta é a carta… Não sei como começar. Acho que esse foi sempre o meu maior problema. Bem… esta é a última carta de um condenado. Não será a forma mais bonita de pôr as coisas, mas nesta altura tenho dificuldades em encontrar melhores cores para me exprimir. Não sei quanto tempo mais ainda por aqui, entubado até à alma, mas pela cara dos médicos
as enfermeiras nem tanto
que essas são treinadas para nos manterem esperançosos
talvez uma semana, ou duas. E ao dizer
ou duas
há em mim uma esperança nascente, como se uma semana a mais a eternidade; como se uma semana a mais, porque mais sete dias, ainda tão longe daqui. Afinal, em sete dias criou-se o mundo.
Tenho medo! À noite, cubro a cabeça com as mantas - dificultado pela tubagem - para me sentir mais protegido. É um truque que aprendi em criança. Também os bichos se enrolam, parece que assim nada nos poderá atingir. É ilusão, eu sei, mas
(não é ilusão a vida toda?)
é só isso que me resta.
Queria escrever um livro sobre a minha vida, mas numa semana
ou duas…
Não sou um Camilo Castelo Branco, nem a minha vida é um amor de perdição. Professor de matemática, casado, divorciado aos quarenta e três anos, sem filhos, para o bem e para o mal, e agora aqui, com um abutre a comer-me no fígado Prometido.
Muitos excessos? Excessos são excessos, nem muitos nem poucos. Mas direi que, alguns. Só para facilitar o discurso.
Queria escrever um livro sobre a minha vida, mas numa semana
ou duas…
Não tenho tempo… e ao escrevê-lo, vem-me à ideia Evariste Galois, um matemático francês que morreu em duelo aos vinte e um anos para salvar a honra de uma puta
(que já não estou para eufemismos)
e que na véspera do duelo passou a noite em claro a escrever ideias e a referir constantemente “Não tenho tempo, não tenho tempo...”
Também ele estava condenado; também ele não tinha tempo, também ele não era um Camilo Castelo Branco, ainda que a sua vida fosse um amor de perdição. Talvez por isso tenha ficado para a história, agora eu, José Eduardo Peres Migueis, cinquenta e dois anos, divorciado e sem filhos
para o bem e para o mal
professor durante vinte e oito anos e nem uma linha para a história da humanidade. Um número, apenas, no Arquivo de Identificação
249010…
nunca me lembro dos dois últimos algarismos
(um professor de matemática nunca diz números)
nunca me lembro dos dois últimos
algarismos
mas aposto que 13.
Não sou supersticioso, mas
aposto que 13.
Queria escrever um livro sobre a minha vida porque vou morrer e tenho medo. Pois quem não deixa filhos nem obra, morre mesmo. E esta carta, ou desabafo (já que a ninguém se dirige) não chegará para me manter vivo muito tempo, acabando por acabar, algures, na lixeira municipal, misturada com os restos das minhas coisas que não servirão a ninguém.
Os amigos, aqueles que me visitam todos os dias por obrigação
(obrigação para com eles mesmos)
ainda chorarão ao lê-la. Lembrar-se-ão de mim neste Natal, numa ou outra reunião de grupo ou daqui a um ano e uma semana
ou duas.
Depois, como o fumo de um cigarro fumado há muito, serei uma vaga memória no pensamento ocupado de cada um. Porque apesar da morte longe quando dor nenhuma, também eles, como Galois, não têm tempo.
Que fiz eu da minha vida? Deixei-a passar. Não podia fazer mais nada. Não tinha tempo. Amanhã. Para a semana. Para o mês que vêm. Nas férias. Daqui a um ano. Quando me reformar vou viajar, ler os livros que tenho em atraso; fazer isto e aquilo; que depois, sim… depois, porque ainda longe, como uma semana, ou duas, somos capazes de qualquer coisa. Mas agora não, que não temos tempo.
Mas daqui até à reforma uma vida longa e eu, uma semana, duas quem sabe.
E terminada a hora da visita, eles aliviados e eu também. Até os amigos são cínicos. Mas não é por mal. Até eu, a uma semana
ou duas
de…
não consigo não ser cínico, ao ouvi-los, para lá porta basculante, a qual não transporei mais por meu próprio pé, a falarem de mim, no passado
- Era um tipo impecável, este gajo.
e às diferentes reacções à minha aparência. A Laurinha a rir e a falar da vida dela, dos planos para as férias, a pedir desculpa pelo Óscar que mais uma vez não pôde vir. Sempre a correr de um lado para o outro, a lutar pela promoção
como se dissesse
- Sabes como é!
e eu
como se respondesse
- Claro que sei!
a não responder nada
cínico.
Depois o Rui que conheceu um gajo, cujo patrão da cunhada tinha um tio que estava na minha situação e que de um dia para o outro
- … puf…
começou a melhorar e hoje está bom. Que o mais importante é pensamento positivo. A Rosa a pedir-me para ter fé e a desejar-me as melhoras à saída; o Costa Paulo a garantir-me que a ciência dá pulos gigantescos todos os dias. Como se algum pulo da ciência pudesse chegar a tempo, uma semana, ou duas, de enxotar o abutre do Cáucaso do IPO. Ou a Margarida a tentar disfarçar o desconforto, a compor as flores na jarra com cara de enterro, como se eu já, daqui a uma semana, duas no máximo. Sem perceber, coitada, que trazer flores a um homem à beira do precipício é como apresentar uma mulher divina a um eunuco. Flores que talvez me sobrevivam, apesar de já mortas. Assim como eu, cortado já do caule da vida, mas ainda vivo, como a beleza flores ou a luz das estrelas extintas.
Ainda que, para lá porta basculante
- Era um tipo impecável, este gajo.
E eu com vontade de os chamar à realidade, com vontade de lhes dizer, vivam enquanto podem, corram enquanto as vossas pernas tiverem forças, para longe, para muito longe… a não dizer nada
(cínico)
o que faria se no lugar deles
a não dizer
que largava tudo e ia viver.
Mas se estivesse no lugar deles também estaria ocupado e deserto para que a enfermeira viesse anunciar
- Acabou a visita.
porque
- Custa-me imenso vê-lo assim!
Está-se a acabar o que dizer. Ou a vontade de dizê-lo. Já que a utilidade, essa, nunca existiu. Vou pousar o bloco e a caneta e vocês esta carta, que não vos empato mais a vida atarefada, porque o autocarro não pode esperar, o relógio não pode esperar, o trabalho não pode esperar, embora vocês
razão única da vossa vida
possam, porque afinal, ainda falta tanto tempo para a reforma, e depois sim, é que vai ser viver.
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