Chamava-se Suzy e foi a minha primeira boneca. Recebera-a de presente no meu quinto aniversário quando o meu pai
- Toma lá.
sem embrulho, sem nada. Para não sufocar
não por desleixo
para não sufocar.
Eu compreendo, pai!
- Toma lá.
Apenas aos cinco. Antes disso, qualquer memória; vida alguma. Antes, creio que não existia. As coisas que não lembramos não existem, não é? Devo ter nascido com cinco anos. No dia em que o meu pai
- Toma lá.
Sem embrulho…
não por desleixo
para não sufocar.
Eu compreendo, pai!
Foi o dia mais feliz da minha vida. Ainda hoje é, porque foi o meu primeiro dia
pois
antes disso, qualquer memória; vida alguma.
o meu primeiro dia
por isso, não
- Trinta e oito.
quando
- Idade?
mas trinta e três
visto que
as coisas que não lembramos não existem, não é?
Tratava-a como parte de mim. Ainda me recordo do cheiro a borracha doce da sua cara, e de um cheiro mais pesado; dos seus cabelos. O cheiro abafado dos cabelos das bonecas. Um cheiro único, indescritível por metáforas ou comparações. É o cheiro do cabelo das bonecas. Dizer o quê!? O cheiro que quem nunca teve bonecas não pode compreender, por mais que
mais pesado
abafado
metáforas.
No dia seguinte dei-lhe banho e cortei-lhe o cabelo. Durante uns dias tudo normal. Mas quando percebi que não voltava a crescer, tive o primeiro contacto
não com a palavra
com o sentido - irreversibilidade - pois uma criança não tem contacto com palavras deste tamanho mal acaba de nascer.
Por isso
apenas o sentido
irreversibilidade:
o primeiro contacto com a morte; com a realidade. A minha primeira dor; primeira desilusão. Não o Pai Natal, como a muitos; não quando o meu pai
- Toma lá.
sem embrulho, sem nada. Para não sufocar
não por desleixo
para não sufocar.
Eu compreendo, pai!
Nada disso! Os cabelos da Suzy. Nada era mais real para mim e nada me custou até hoje como aquele confronto; o facto de a Suzy não estar viva.
O meu primeiro desgosto; primeiro luto. A minha primeira culpa, pois tinha sido eu a matá-la: Dalila traiçoeira. A sua vida nos cabelos. E agora nada. Nem um brilho. Apenas um amontoado de borracha e tecido pronta a decompor-se-me nas mãos.
Sem embrulho, sem nada.
Eu compreendo, pai!
Os cabelos sempre do mesmo tamanho, a única coisa a crescer era a frustração do nunca mais; a certeza que a boneca morta, ainda que não apodrecesse
ainda que de olhos abertos
se a punha em pé ou sentava -
mas nenhum brilho; pontinha alguma de vida -
o cheiro a borracha ainda presente, mas aquele cheiro mais
pesado
o cheiro abafado dos cabelos das bonecas
único
indescritível por metáforas
comparações
que quem nunca teve bonecas não pode compreender
esse
nunca mais.
E eu a perceber que nem só de olhos fechados se está realmente morto. Por isso, quando o meu pai morreu, a dor a não custar-me tanto. A custar-me quase nada. Não porque ele sempre ausente, nenhuma palavra, nenhum gesto
um embrulho que fosse
mas porque muito cedo contacto com
o sentido
não com a palavra
com o sentido apenas
pois uma criança não tem contacto com
(irreversibilidade)
palavras deste tamanho mal acaba de nascer.
E por isso habituada já. O que custa e a primeira vez, não é?
E eu a ouvir, uns anos mais tarde, que aos mortos crescem as unhas e o cabelo e a ter a garantia de que a Suzy mais que morta
pois nem unhas nem cabelo
silêncio apenas.
Morta desde sempre, uma fraude. Até nisso, a única coisa que o meu pai
- Toma lá.
desprovida de afecto, de vida
de embrulhos
cheia por mim de coisas invisíveis
ilusões
como tudo na minha vida: o meu pai; as minhas memórias de mim
desde os cinco anos
quando nasci
sempre eu a encher de coisas invisíveis
ilusões
o “não sei quê” entre nós.
Enquanto o pai
nem uma palavra, um gesto
um embrulho que fosse.
Sempre eu a
- …compreendo, pai!
Morta desde sempre. Enganada desde sempre. Eu que a tinha enterrado no jardim, porque a julgava morta e ela simplesmente
cansada
como o meu pai
- …cansado, filha.
- Não maces o teu pai, Mafalda. Não vês que está cansado, filha.
Como a Suzy. Não morta, cansada apenas…
Por isso, quando o meu pai morreu, a dor a não custar-me tanto. A custar-me quase nada. Não porque ele sempre ausente; nunca uma palavra, um gesto
um embrulho que fosse
mas porque muito cedo contacto com
o sentido
não com a palavra
com o sentido.
2 comments:
Quando puderes aparece em www.aliceatrasdoespelhos.blogspot.com
Bejos da metrópole para os confins do país!
“…as coisas que não lembramos não existem, não é?” – é por essas e por outras q eu gosto tanto da memória.
Küsse
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