Thursday, July 05, 2007

I.N.R.I

- O André não anda nada bem, Gaspar!

a mãe do meu melhor amigo, num desses cafés da moda, onde combinou comigo um encontro para falar do filho.

- Tu és o melhor amigo dele, Gaspar. De certeza que a ti ele ouve.

e o André

- Não me chateies Gaspar! Foda-se, pareces a minha mãe!

se eu por ventura

- Meu, o que e que se passa contigo?

- Passa-se que de um dia para o outro toda a gente acha que tem o direito de se meter na minha vida!

- Não é que eu me queira meter na vida dele. Entendes, Gaspar? Mas é que ando preocupada. Que diabo, sou mãe!

E os meus olhos a ganharem vida própria na direcção daquele peito de mãe, aflito, onde um Cristo fulgente me convidava a um abraço.

- Não pára em casa; não me dá ouvidos; só fala aos gritos; não quer estudar nem trabalhar. Eu não sei onde isto vai parar!

- Nem eu! - respondi por reflexo, incapaz de controlar os olhos.

- Mas sabes alguma coisa, Gaspar?

- O suficiente para fazer uma mulher da sua idade muito feliz! - formou-se-me no pensamento.

- Não, não. Não sei nada. - transformou-se-me nos lábios.

como que renegando aquele Cristo que me tentava os olhos. Ali estava Deus e o Diabo, à direita e à esquerda do Senhor, a testarem a minha fé, numa Santíssima Trindade, dizendo-me

- Olha para mim. Olha para mim…

num hipnotismo difícil de resistir.

- Olha para mim, Gaspar. Sabes alguma coisa?

- Hum?

- Estás-me a ouvir?

- Sim, claro! Não sei nada.

- No outro dia encontrei-lhe isto debaixo da cama.

e uma mão estendida na minha direcção com uma pratinha queimada, onde faltava o bombom, provavelmente na sua boca, a sua língua, que eu teria de buscar sem usar as mãos, como um Cristo.

- Olha para mim. - um peito aflito.

- Olha para mim. - uma cruz aflita.

e eu num esforço tremendo a fingir não reparar que a mãe do André

soutien algum

necessidade alguma de um, apesar da idade

quarenta e poucos

dois filhos.

- Nem com a irmã ele fala. E eram unha e carne.

Unha e carne, unha e carne, unha e carne…

soutien algum

necessidade alguma

e eu num esforço tremendo a fingir que a mãe do André não estava a inventar aquele pretexto todo para se fazer a mim

para me entregar ao suplício num ecce homo.

E eu num esforço tremendo a fingir que acreditava que as mulheres não todas iguais. E eu num esforço tremendo a fingir que se tinha esquecido do soutien com a pressa de falar comigo.

- Ando com a cabeça esgotada.

- Olha para mim..

Os olhos pareciam preocupados, mas os lábios…

- Olha para mim…

- E para mim.

- E para mim.

E nisto o crucifixo a mexer-se. Os braços de Cristo a forçarem os cravos

dois pinguinhos de ouro

não cravos

pinguinhos de ouro

porque para um rei é o mínimo

ainda que sendo rei do judeus

portanto

a forçarem os pinguinhos de ouro

tentado pelo abismo que se abria a seus pés. Não poderia haver pior calvário! E nisto eu cheio de inveja do Redentor; de braços esforçados contra os pinguinhos de ouro, procurando lançar-se no abismo, render-se à tentação, ao vale do inferno profundo, o purgatório indeciso entre o bem e o mal

- … o bom e o mau seio… - na explicação psicanalítica do meu pai.

ambos bons

apesar da idade

quarenta e poucos

E eu a querer que ele caísse da cruz, a querer tomar o seu lugar, o seu martírio, a Paixão por completo

vontade de gritar

- Sou eu o rei dos judeus!

- Barrabás? - Não senhor! O profeta.

a pedir a Deus que me martirizasse a mim

dois pinguinhos de ouro

três, pronto

cravos de ferro, que não sou de luxos

porque dali, com certeza que se vê melhor o mundo, a aflição dos homens

o peito de uma mãe que

- … a cabeça esgotada.

soutien algum

necessidade alguma de um, apesar da idade

quarenta e poucos

dois filhos.

- No outro dia encontrei isto

e não uma pratinha

pratinha alguma

um invólucro de borracha transparente

como se

- O corpo de Cristo.

na pontinha dos seus dedos

e o corpo de Cristo uma composição de latex

talvez por questões de higiene ou de conservação

e eu fingindo que a acreditar

que as mulheres não todas iguais.

E eu fingindo que a acreditar

que o decote apenas por causa do calor

não para torturar Cristo, ou o mais forte dos homens.

E eu com inveja daquele Mártir e de sua tentação Madalénica.

Com vontade de gritar

- Sou eu, sou eu o rei dos Judeus. O filho do Senhor. O Messias. O que vocês quiserem, mas por favor, um lugar na cruz.

dois pinguinhos de ouro

três, pronto

cravos de ferro

o que der mais jeito.

Dispenso a coroa. Não sou de ostentações.

E um suor frio a percorrer-me o corpo

uma fraqueza

de repente

- Nada. Não se passa nada!

- Gaspar!?

uma quebra de tenção, talvez

- Deve ser isso. Uma quebra de tenção!

talvez açúcar

qualquer coisa do género

mais “qualquer coisa do género”

tudo desfocado

turvo

os sentidos

qualquer coisa do género

- Gaspar!?

- Gaspar…

- Olha para mim.

- Estás bem?

- Não, não sei nada.

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