- O André não anda nada bem, Gaspar!
a mãe do meu melhor amigo, num desses cafés da moda, onde combinou comigo um encontro para falar do filho.
- Tu és o melhor amigo dele, Gaspar. De certeza que a ti ele ouve.
e o André
- Não me chateies Gaspar! Foda-se, pareces a minha mãe!
se eu por ventura
- Meu, o que e que se passa contigo?
- Passa-se que de um dia para o outro toda a gente acha que tem o direito de se meter na minha vida!
- Não é que eu me queira meter na vida dele. Entendes, Gaspar? Mas é que ando preocupada. Que diabo, sou mãe!
E os meus olhos a ganharem vida própria na direcção daquele peito de mãe, aflito, onde um Cristo fulgente me convidava a um abraço.
- Não pára em casa; não me dá ouvidos; só fala aos gritos; não quer estudar nem trabalhar. Eu não sei onde isto vai parar!
- Nem eu! - respondi por reflexo, incapaz de controlar os olhos.
- Mas sabes alguma coisa, Gaspar?
- O suficiente para fazer uma mulher da sua idade muito feliz! - formou-se-me no pensamento.
- Não, não. Não sei nada. - transformou-se-me nos lábios.
como que renegando aquele Cristo que me tentava os olhos. Ali estava Deus e o Diabo, à direita e à esquerda do Senhor, a testarem a minha fé, numa Santíssima Trindade, dizendo-me
- Olha para mim. Olha para mim…
num hipnotismo difícil de resistir.
- Olha para mim, Gaspar. Sabes alguma coisa?
- Hum?
- Estás-me a ouvir?
- Sim, claro! Não sei nada.
- No outro dia encontrei-lhe isto debaixo da cama.
e uma mão estendida na minha direcção com uma pratinha queimada, onde faltava o bombom, provavelmente na sua boca, a sua língua, que eu teria de buscar sem usar as mãos, como um Cristo.
- Olha para mim. - um peito aflito.
- Olha para mim. - uma cruz aflita.
e eu num esforço tremendo a fingir não reparar que a mãe do André
soutien algum
necessidade alguma de um, apesar da idade
quarenta e poucos
dois filhos.
- Nem com a irmã ele fala. E eram unha e carne.
Unha e carne, unha e carne, unha e carne…
soutien algum
necessidade alguma
e eu num esforço tremendo a fingir que a mãe do André não estava a inventar aquele pretexto todo para se fazer a mim
para me entregar ao suplício num ecce homo.
E eu num esforço tremendo a fingir que acreditava que as mulheres não todas iguais. E eu num esforço tremendo a fingir que se tinha esquecido do soutien com a pressa de falar comigo.
- Ando com a cabeça esgotada.
- Olha para mim..
Os olhos pareciam preocupados, mas os lábios…
- Olha para mim…
- E para mim.
- E para mim.
E nisto o crucifixo a mexer-se. Os braços de Cristo a forçarem os cravos
dois pinguinhos de ouro
não cravos
pinguinhos de ouro
porque para um rei é o mínimo
ainda que sendo rei do judeus
portanto
a forçarem os pinguinhos de ouro
tentado pelo abismo que se abria a seus pés. Não poderia haver pior calvário! E nisto eu cheio de inveja do Redentor; de braços esforçados contra os pinguinhos de ouro, procurando lançar-se no abismo, render-se à tentação, ao vale do inferno profundo, o purgatório indeciso entre o bem e o mal
- … o bom e o mau seio… - na explicação psicanalítica do meu pai.
ambos bons
apesar da idade
quarenta e poucos
E eu a querer que ele caísse da cruz, a querer tomar o seu lugar, o seu martírio, a Paixão por completo
vontade de gritar
- Sou eu o rei dos judeus!
- Barrabás? - Não senhor! O profeta.
a pedir a Deus que me martirizasse a mim
dois pinguinhos de ouro
três, pronto
cravos de ferro, que não sou de luxos
porque dali, com certeza que se vê melhor o mundo, a aflição dos homens
o peito de uma mãe que
- … a cabeça esgotada.
soutien algum
necessidade alguma de um, apesar da idade
quarenta e poucos
dois filhos.
- No outro dia encontrei isto
e não uma pratinha
pratinha alguma
um invólucro de borracha transparente
como se
- O corpo de Cristo.
na pontinha dos seus dedos
e o corpo de Cristo uma composição de latex
talvez por questões de higiene ou de conservação
e eu fingindo que a acreditar
que as mulheres não todas iguais.
E eu fingindo que a acreditar
que o decote apenas por causa do calor
não para torturar Cristo, ou o mais forte dos homens.
E eu com inveja daquele Mártir e de sua tentação Madalénica.
Com vontade de gritar
- Sou eu, sou eu o rei dos Judeus. O filho do Senhor. O Messias. O que vocês quiserem, mas por favor, um lugar na cruz.
dois pinguinhos de ouro
três, pronto
cravos de ferro
o que der mais jeito.
Dispenso a coroa. Não sou de ostentações.
E um suor frio a percorrer-me o corpo
uma fraqueza
de repente
- Nada. Não se passa nada!
- Gaspar!?
uma quebra de tenção, talvez
- Deve ser isso. Uma quebra de tenção!
talvez açúcar
qualquer coisa do género
mais “qualquer coisa do género”
tudo desfocado
turvo
os sentidos
qualquer coisa do género
- Gaspar!?
- Gaspar…
- Olha para mim.
- Estás bem?
- Não, não sei nada.
No comments:
Post a Comment