- Quando eu estive preso na Guiné… - o meu tio Ricardo à mesa do almoço, de cigarro preso na pontinha dos dedos, com a mão de lado, como se segurasse uma bandeja… - só nos davam carne de macaco e banana cozida!
E eu a saber que era mentira. E toda a gente a saber que era mentira, menos a minha avó, que durante quatro anos julgou o filho morto, embora apenas
- Preso, minha mãe! Nem queira imaginar! Um horror!
embora apenas em Espanha, com um catalão que conhecera no Algarve, um amigo (que nesse tempo os homens ainda não tinham namorados).
- Um horror!
E eu a saber que era mentira, porque a minha mãe (ou talvez a minha tia para a minha mãe):
- Achas mesmo que o Ricardo esteve no ultramar?!
porque minha mãe
- Era uma autêntica mulher quando se maquilhava e vestia com as nossas roupas!
porque o meu pai
- Chamavam-lhe a Borboletinha da Ribeira!
porque a minha mãe (não a minha tia para a minha mãe)
- Coitado! Todos faziam troça dele! Não tinha um único amigo!
Até ao dia em que, na Praia da Rocha (não em Santa Margarida como todos pensavam), um catalão:
- Tienes fuego?
E o meu tio (não no quartel como todos pensavam), num dancing-bar da Portimão, de braço esticado, com a arma de fogo na mão (não a G3 como todos pensavam); um isqueiro de prata que lhe havia dado um outro amigo (que nesse tempo os homens ainda não tinham namorados).
- Coitado! Todos faziam troça dele! Não tinha um único amigo!
Até ao dia em que (na manhã seguinte) o novo amigo, (que nesse tempo os homens…) a pedir-lhe
- Vien comigo para Barcelona!
Até ao dia em que
- Fui mobilizado para a Guiné!
à hora do jantar (como agora à hora do almoço), mas sem o cigarro preso na pontinha dos dedos, com a mão de lado, como se segurasse uma bandeja, porque o meu avô ainda vivo e
- Eu que sonhe que vocês fumam!
Até ao dia em que uma choradeira enorme porque:
- Ai, que o meu rico filho vai para a guerra!
Ainda que apenas para Barcelona. Ainda que apenas com um amigo (que nesse tempo…).
- Coitado! Todos faziam troça dele! Não tinha um único amigo!
E, em menos de uma semana, no comboio para Lisboa, onde dias depois um barco o enviaria, não para o ultramar, com outros tantos da sua idade (como toda a gente pensava), mas para Barcelona, apenas com um amigo (que nesse tempo os homens ainda não tinham namorados).
- Chegava a estar aos três dias sem uma pinga de água! - e uns lábios em forma beijo a sorverem ao de leve o filtro preso na pontinha dos dedos, numa mão de lado, como se segurasse uma bandeja, porque o meu avô há muito falecido e já não
- Eu que sonhe que vocês fumam!
- Três dias! Imaginem vocês!
enquanto a minha avó a emocionar-se e a apertar-lhe a mãozinha gorda aninhada sobre um delicado cruzar de pernas.
- Eram uns selvagens! Não sei como não morri!
E eu a saber que era mentira. Não porque a minha mãe (ou a minha tia para minha mãe), mas porque um dia, um diário, sobre os meus joelhos esfolados de miúdo traquina, a abrir-se em segredo, como uma caixa de Pandora e lá de dentro
“Esteban! É assim que ele se chama. Que nome meu Deus! Que homem! Pediu-me lume a noite toda. E de cada vez que se aproximava, de cigarro nos dedos, eu tremia todo, como se um “fiscal de isqueiros” ou um polícia
- A licença do isqueiro?
E não apenas
- Tienes fuego?
Como se um “fiscal de isqueiros” ou um polícia
- Ai não sabia?! Decreto-lei nº 28219!
E não apenas
- Muchas gracias!
Não tirou os olhos de mim a noite toda. Eu tremia por dentro, como se um “fiscal de isqueiros” ou um polícia
- São duzentos e cinquenta escudos de multa!
E não apenas
- Es mui guapo!
Que loucura, meu Deus!”
- Não sei como não morri! … carne de macaco e banana cozida! Um horror!
E eu a saber que era mentira. Não porque a minha mãe (ou a minha tia para minha mãe), mas porque um dia, um diário - segundo, terceiro, quarto - sobre os meus joelhos
“Como foi que ele me pode fazer uma coisa destas?!” Cabrão! Cabrão! Cabrão! Mil vezes cabrão! Hijo de puta! Cabron! Com um balarinozinho de merda! Filho da puta, cabrão! Mil vezes cabrão! Quatro anos da minha vida…Paneleiro de merda! Filho da puta, filho da puta, filho da puta…”
- Não sei como não morri! Um horror!
porque um dia, um diário - segundo, terceiro, quarto - sobre os meus joelhos
“Foi Deus que não quis que eu morresse! Foi o pior dia da minha vida! Nunca me tinha sentido tão só! Nada valia a pena e… Cheguei ao hospital já quase sem vida! Se não tivesse sido a senhoria (que todos os dias me batia à porta a reclamar a renda em atraso)…”
- Se não tivesse sido a preta que nos levava a comida (se é que àquilo se podia chamar comida), a apiedar-se de nós…
“Se não tivesse sido a senhoria (que todos os dias me batia à porta a reclamar a renda em atraso)…”
- Hoje não estaria aqui! - o meu tio Ricardo à mesa do almoço, de cigarro preso na pontinha dos dedos, com a mão de lado, como se segurasse uma bandeja, porque o meu avô há muito falecido e já não
- Eu que sonhe…
1 comment:
mas que somos mais do que o sonho de ser quem não somos e a fuga do que percebemos realmente sermos?
Post a Comment