- E se de repente parássemos para pensar? - o Ramos a perguntar para o ar do café, no intervalo de dois golos de cerveja, onde apenas nós dois, ao fim do dia, depois do trabalho.
- “E se de repente parássemos para pensar?”
Eu a não dizer nada e, pousado o copo, lambidos os lábios, o Ramos, que não esperava resposta, a responder:
- Seria uma tragédia! - entre um franzir de testa e um esgar de boca. Para continuar logo de seguida:
- Somos (e ai de quem disser o contrário) seres pensantes. Mas, se parássemos para pensar no que isso significa realmente, a que conclusão chegaríamos? A mim parece-me que a nenhuma! Somos todos mais espertos que o vizinho do lado. O que significa - repara - que o vizinho do lado é mais esperto que nós. E aqui começa o paradoxo e termina a argumentação. A verdade é que passamos a vida a tentar enganarmo-nos uns aos outros, esquecendo-nos que os outros fazem exactamente o mesmo. Damos graxa ao patrão e ele finge que não percebe; sorrimos para o peito da secretária e ela finge que não percebe (ao mesmo tempo que aumenta o decote e diminui a saia para aquele colega de trabalho que também finge que não percebe). E até nos achamos mais espertos que nós mesmos, ou não passaríamos a vida e tentar enganar-nos quando, ao vermos o cabelo desaparecer do espelho, mudamos o risco e o reflexo finge que não percebe. Da mesma forma que elas olham para o peito a render-se à inclemente lei da gravidade, apertam o wonderbra, dão duas voltas no provador da loja e a imagem, de busto em riste, finge que não percebe. E assim nos vamos coçando uns aos outros, conforme a conveniência do momento, pois, apesar de seres pensantes, não temos tempo para pensar em tudo. Asinus asinum fricat.
Muito gosta o Ramos das expressões latinas!
- Que é como quem diz… - e traduzia, à sua maneira - …um burro arranja sempre outro burro que o coce.
Enquanto um gesto circular, na linguagem que só os empregados dos cafés entendem, a pedir mais duas cervejas para aquele canto do café, onde apenas nós dois, ao fim do dia, depois do trabalho. Enquanto o Ramos:
- Acordamos um dia e estamos cheios de responsabilidades: filhos para criar, casamento para gerir, casa, carro (vários outros luxos para pagar) e horários para cumprir. Mas já são sete e meia e não podemos perder tempo com questões existenciais, porque ainda temos de acordar e preparar os miúdos (que ainda ontem éramos nós) e levá-los ao infantário antes de seguir para o trabalho. Um duche metódico e sem prazer desperta-nos os sentidos moles e começamos a sentirmo-nos melhor, como se realmente estivéssemos no caminho certo e, ao chegarmos à garagem, temos o dissipar de todas as nossas dúvidas, a concretude material de todos os nossos sonhos.
E os meus dedos a afagarem a chave do carro, como se uma parte de mim, como se me doesse a sua perda… e doeria com certeza! E os meus dedos a afagarem a chave do carro na continuação de mim, ao lado do telemóvel, da carteira, do maço de tabaco, do isqueiro, dos óculos escuros, no meio de um pensamento feito, dito: - Mas que raio de tanta coisa têm as mulheres para pôr na mala? E a resposta a vir em forma de duas cervejas para a mesa. E a resposta a apagar-se cinzeiro e na lembrança. E a resposta a sumir-se entre os lábios do Ramos que:
- No posto do costume, que nos acompanha a caminho do trabalho, surge uma música que conhecemos de cor e que nos reporta vinte anos atrás, àquele beijo despido de responsabilidade que demos numa colega de escola, na época em que ainda era frequente ouvirmos “ainda não tens idade para isto, para aquilo e para aqueloutro”. Mas à entrada da cidade o trânsito abranda e uma notícia despersonalizada rebenta-nos o balão da lembrança, e um atentado no Médio Oriente toma o lugar do beijo sem nome na memória. Mais dez, menos quinze, mais vinte, menos cem… O que importa? E o pensamento não pensado de: - Onde é que isto vai parar? E uma buzinadela tolhe o esboço de reacção, e outra e outra diminui-nos aquilo de que mais soberbamente nos orgulhamos: a nossa racionalidade! Enquanto o mundo avança lento num marasmo de pára-arranca rumo ao centro da cidade, rumo à outra ponta do universo.
Os meus olhos fixos nas palavras invisíveis que se entrançavam diante dos lábios lambidos do Ramos, e o movimento concordante da minha cabeça, a darem-me, com certeza, um ar hipnotizado de cão de chapeleira.
- A porta da empresa, a cara inchada dos colegas, o gel e o rímel, os apertos de mão porque sim e um beijo ou outro pela mesma razão. “Aos seus lugares…preparar…largar!” Começa o desenfreanço e, até à hora do almoço, tudo perece real. Somo adultos, finalmente! Responsáveis! Doutor! Doutora! Dona Alice! Senhor António! Fotocópia, fax, telefone, mail, pbx, xpto! Elevador rumo ao bar da esquina… Moda, desporto, collans, motores, ombros largos, belas ancas, e: uma fatia de quiche, uma sopa, uma salada, um sumo natural, uma conversa actual sem propósito ou consequência e os velhos temas de sempre. Homens v.s mulheres, bons v.s maus, espertos v.s parvos, ricos v.s pobres, amor v.s sexo, Homem v.s animal…
Temos representação simbólica.
Mas denominamo-nos racionais!
Inventámos o fogo!
E depois a pólvora, as ligaduras e a morfina.
Inventámos a roda!
E cada vez somos mais quadrados!
Conquistámos o dom da fala!
E perdemos a dádiva da escuta!
Criámos cidades, inventámos o automóvel e o relógio!
E depois a necessidade urgente de férias no campo.
Organizámos sociedades e fizemos leis!
E constantemente colocamos em causa a sua justiça.
Casamo-nos para toda a vida!
E uns anos depois juramos que nem mortos queremos ver a outra pessoa à frente.
Descobrimos a comida rápida!
E construímos ginásios por todo o lado.
E o discurso flúi, infecundo, num propósito masturbatório de alivio de tensão. Três quartos de hora: comida rápida, conversa rápida, café expresso! Até que… de novo adultos e responsáveis, e mais papeis e valores virtuais, mais reuniões e sorrisos profissionais, mais segundos, mais minutos, menos horas e de novo dentro do carro a caminho de casa, com o recibo do ordenado aos pulos no bolso; o comprovativo da nossa esperteza; a prova cabal que orgulhosamente exibimos perante nós mesmos e que apenas nos diz que vendemos o nosso tempo por um preço que mal chega para comprar um “tempinho” para nós.
E os meus dedos, húmidos do copo (não da ansiedade), a folgarem ligeiramente a corda, em forma de gravata colorida, que me apertava o goto, enquanto a minha cabeça, presa por um arame, apenas: sim, sim, sim, num balanço sem vontade.
- Mas a nossa cabeça não aguenta com tudo - continuava o Ramos - ainda que sejamos o topo de gama do macaco moderno, e a atenção vai para o carro do lado, onde uma jovem retoca a imagem gasta no retrovisor mágico. Espelho meu, espelho meu…Uma buzinadela e um cartaz antigo a lembrar-nos de uma promessa por cumprir com o rosto de um político no qual já nem sabemos se votámos ou não. E avançamos, lentos… primeira, ponto morto; segunda, velocidade de cruzeiro; stop à frente… stop… stop atrás. Insiste, inspira…repete do início. Mas seguimos em frente, porque ainda temos de ir buscar os miúdos ao infantário, deixando para trás o senhor do cartaz a sorrir para o carro seguinte. E um cliché, como um desabafo, a sair-nos qual espirro inesperado, ante o sorriso político que já não vemos: “Eles querem todos é tacho!” - um comentário insignificante vazio de significado. Mas seguimos em frente, porque ainda temos de passar no supermercado a comprar qualquer coisa rápida para comer diante da televisão, pois cada minuto é de ouro e esses ninguém nos paga. O melhor tira nódoas; os melhores cereais; o melhor creme hidratante; o iogurte macérrimo, menos 200% de gordura. Ómega3; L. casei imunitass; bífidos activos; poliinsaturados. E, logo de seguida, as perguntas por que todos esperam: - Quem quer ser bonita? Quem quer ser famoso? Quem quer ser milionário? E todos de braço no ar. Eu! Eu! Eu! E o sonho aumenta enquanto a cabeça pende sobre o peito vazio, porque o sono nos faz festas na cabeça dormente como que dizendo: - Lindo menino! Linda menina!
E um bocejo contido a formar-se-me diante da boca muda, trazendo-me as lágrimas aos olhos, enquanto um dedo a aproveitar a deixa para se instalar entre lábios, encaixando a unha entre os dentes nervosos, por só agora se lembrarem que já sete da tarde e o boletim da sorte aos pulos no bolso… no mesmo bolso que o recibo do ordenado… No mesmo bolso que o recibo do ordenado!!! No mesmo bolso que a desculpa, dita: - Olha, são dez euros que ficam em caixa! No mesmo bolso que as palavras do Ramos:
- E assim, mais uma folha amarelece e cai da árvore dos dias. E assim, menos uma folha verde no calendário da vida. E assim, folha a folha, vamos desaparecendo da face do espelho (já sem risco ou wonderbra que nos valha) e já temos de nos pôr nos bicos dos pés, como há muitos anos atrás, para chegar à prateleira onde íamos buscar já não nos lembramos de quê! E assim hipotecamos os melhores anos da nossa vida a arranjar dinheiro para pagarmos os remédios e a mensalidade do lar quando chegar a hora do merecido descanso. Porque afinal, a vida não é só… (isto?). E assim deixamos passar o comboio dos sonhos à espera da limousine da ilusão (que são coisas distintas), e que “na realidade” não passa de uma abóbora sem réstia de magia. E assim nos perdemos do que somos, à procura daquilo que julgamos ser. E assim se passa o tempo na vida de um macaco sábio: o expoente máximo da cadeia evolutiva (ai de quem disser o contrário)! Mas a fona da vida não nos dá muito tempo para pensarmos nisto e ainda bem. Porque o que será que acontecia se de repente parássemos para pensar? - o Ramos a perguntar para o ar do café, no intervalo de dois golos de cerveja, onde apenas nós dois, ao fim do dia, depois do trabalho. O Ramos, que não esperava resposta, a responder:
- Seria uma tragédia! - entre um franzir de testa e um esgar de boca.
Eu a não dizer nada, enquanto ele, pousando o copo, lambendo os lábios, fazendo um gesto circular, na linguagem que só os empregados dos cafés entendem, não para duas cervejas, mas a conta, porque o tempo passa depressa e o Ramos:
- Ainda tenho de ir apanhar a mulher e os putos!
Porque o tempo passa depressa e o Ramos:
- É assim a vida! - na mais portuguesas das expressões.
Porque o tempo passa depressa e o Ramos, como se não tivesse dito nada:
- Bem, até amanhã Zé Miguel!
Porque o tempo... passa depressa!
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