O telemóvel, aninhado em cima da almofada, olhava para mim com o mostrador apagado. Eram oito da noite e não tinha qualquer vontade de pensar no meu jantar. Devia estar a começar o telejornal, mas a notícia que eu queria ouvir, seria pouco provável que o pivot a desse.
Notícia de última hora! Artur Gaidão volta para casa ao fim de dois anos de separação. O Professor de Artes Gráficas confessa amor incondicional pela mulher, Edite Gaidão,…Blábláblá…Agora, digam lá, senhores telespectadores, que o amor não é uma coisa linda!
Um desconforto no braço exigiu-me que pousasse o livro, que há mais de uma hora se abria inutilmente entre os meus dedos ansiosos. Não me lembrava de uma palavra que fosse. Talvez não tivesse chegado a ler uma. Recostei-me para trás no sofá, coloquei os pés envernizados sob um almofadão marroquino e fixei os olhos na tela em branco que havia por cima da lareira de enfeitar a sala.
- Uma tela em branco? Que falta de gosto Artur!
- Não é uma tela em branco! É a tela dos nossos segredos. Uma pintura que mais ninguém poderá entender, mas onde nós sempre nos havemos de encontrar. Será o diário da nossa relação; o nosso álbum de memórias; a tela de projecção do filme das nossas vidas.
Achei bonito e acreditei, mas não mostrei entusiasmo. Até porque já tinha dito que não gostava! E, além do mais, uma tela em branco na parede branca da sala não convence mulher nenhuma! A mim não convence! Mas a verdade é que lá foi ficando e despertando o interesse e a curiosidade de todos quantos nos visitavam?
- Porquê uma tela em branco? - era a eterna pergunta.
- Porque não uma tela em branco!?- era a eternal resposta.
- Ainda se tivesse a assinatura do Picasso! - comentou um dia um amigo nosso.
- Se tivesse, já não era uma tela em branco! - foi a resposta pronta do Artur.
E, verdade também, é que não havia quem não reparasse ou fizesse reparo na tela. Talvez fosse esse o único e real motivo pelo qual o Artur fazia tanta questão de a ter ali, à vista de todos!
Foi muitas vezes tema de discussão entre os convivas e de jogos projectivos até às lágrimas de álcool. Aos poucos, fui-me afeiçoando a ela, talvez na mesma medida em que o Artur se foi esquecendo do seu significado. No fim de contas, uma relação implica equilíbrio de sentires! Às vezes, quando nos chateávamos, sentava-me a contemplá-la, procurando nela coisas boas que juntos lá havíamos pintado. Quase sempre resultava.
No dia em que o Artur saiu de casa - vai já para dois anos - pedi-lhe encarecidamente que ma deixasse ficar.
- Mas se tu nunca gostaste dela!
- Por favor Artur! - pedi-lhe sem qualquer justificação.
- Mas há lá quem entenda a vossa cabeça! - respondeu-me ele naquele tom que irrita qualquer mulher. A mim irrita! Principalmente pela pluralidade do pronome, como se seu fosse mais do que uma. Que raiva me ficava quando ele me dizia “vocês”. Mas dessa vez não contestei. Queria apenas que ele ma deixasse.
- Mas Edite, é apenas uma tela em branco!
É impressionante a capacidade que os homens têm de nos provocar. Como é que o Artur não haveria de dizer “vocês” se eu própria digo “nós”?! E, ao pensar isto, um esboço de riso formou-se, silencioso, diante dos meus lábios descolados.
- Por favor, Artur!
- Mas porque é que não compras outra e pões no lugar desta? Uma nova. Limpa.
- Artur, por favor! - era só quanto me atrevia a dizer.
- Ok, ok! - antes de desaparecer da minha vida, dentro de num encolher de ombros…
Daqueles que irritam qualquer mulher. A mim irritam!
…e fechar da porta nas minhas costas, em forma de assinatura, pondo termo àquele quadro cheio numa tela em branco.
Soube há dias, por uma amiga, que ele se tinha separado da actual companheira, e fiquei contente.
- Sabes quem foi que eu encontrei hoje? - a Marta toda tremelicos, com as mãozinhas fechadas junto ao queixo.
- Quem? - perguntei eu, fingindo não ter qualquer desconfiança.
Não tinha dado certo. - Claro que não poderia ter dado certo: era eu a mulher da sua vida! - pensava para mim mesma, esquecendo-me que a nossa relação também tinha terminado e que, do mesmo ponto de vista, também eu não era a mulher da vida dele. Mas ainda assim fiquei contente. Contente pela derrota da outra. - Também ela não ficou com ele! - esquecendo-me que também já não era meu. - Mas eu vim antes e, por isso… e por isso… - uma qualquer desculpa para a frustração que era não tê-lo! Mas ela com certeza não teria uma tela em branco! - o último reduto. Ou será que teria?
- Mas o que foi que ele te disse:
- Várias coisas! Nomeadamente, perguntou-me por ti.
- E o que foi que tu disseste?
- Disse que estavas óptima, claro! O que querias que lhe dissesse?
- Nada!
- Pois! Disse-lhe até que estavas muito bem! - a Marta a acrescentar num piscar de olho.
- E que mais, conta-me?! - uma excitação adolescente a tomar conta de mim e dos meus modos controlados.
- Perguntou-me se ainda tinhas o mesmo número de telemóvel.
- E?
- Disse-lhe que não.
- E?
- E dei-lhe o novo.
- És tão cabra!
- Achas?
E uma gargalhada histérica a soltar o pano sobre o palco da esplanada, pondo termo ao primeiro acto.
O dia seguinte foi enorme e o seguinte ao seguinte maior ainda. Seguiu-se um terceiro sem que… um quarto e um quinto sem que… E, ao fim de uma semana, continuo à espera de um toque em forma de pincelada transparente na nossa tela em branco. Mas o telemóvel, aninhado em cima da almofada, olha para mim com o mostrador apagado. São já nove da noite, e eu sem qualquer vontade de pensar no meu jantar. Já deve ter terminado o telejornal. Não faz mal! A notícia que eu queria ouvir era pouco provável que o pivot a tivesse dado. De súbito, os meus pensamentos a serem assaltados por um requiem polifónico, e uma excitação selvagem quase a atirar-me ao tapete, no alcance do telemóvel histérico.
- Estou?! - respondo eufórica sem qualquer esforço para disfarçar a voz.
- Olá Edite!
…
- Ah! Olá Marta.
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