- Costumas pensar em mim? - perguntou-me ele numa saída para o almoço a meio do corredor onde íamos sozinhos.
- Quê?
- Perguntei-te se costumas pensar em mim?
Eu tinha ouvido a pergunta, claro, mas não queria acreditar, ou melhor, não queria que a tivesse feito. Mas já que a fizera e, pior ainda, que lha havia feito repetir, tudo quanto queria era que um espaço infinito se abrisse de repente entre nós dois.
- Como assim? - fiz-me de desentendida.
- Se costumas pensar em mim?
- Eu ouvi a pergunta!
- Então porque é que não respondes?
- Porque não estou a perceber?
- Esquece! - disse-me ele, encolhendo os ombros, como é hábito nos homens quando querem ficar “por ali” numa conversa inconveniente.
- Não, mas explica-te! - insisti, em direcção do elevador.
- Esquece! - repetiu ele, andando ao meu lado, mexendo no telemóvel cúmplice, que entretanto havia tirado do bolso das calças sob o pretexto, talvez, de ver as horas.
- Então mas porque é que perguntaste aquilo?
Para quem não queria que aquela conversa tivesse começado, estava-lhe a dar corda demais. Mas como agora era ele o peão, senti que podia abrir um pouco a guarda ao rei. Todavia, a minha esperteza era igual à sua e não houve grande tempo para preparar a defesa: era de novo a sua vez de jogar.
- Fiz-te uma pergunta simples, e tu entendeste muito bem! Não precisavas de tempo para responder. Era sim ou não. Mas já vi que sim, que pensas, caso contrário terias dito que não, ou então, dado a resposta típica das mulheres em situações embaraçosas: - “Tás parvo?!”.
Não sabia o que dizer e, apesar de me irritar, como a todas as mulheres, a designação colectiva, era exactamente isso que me ia saindo.
A seta indicava que o teleporte dos nossos dias não haveria de demorar. De repente, o ar do corredor tornou-se duas vezes mais quente e as suas palavras eram pinceladas rubras nas minhas bochechas claras.
- Mas esquece! - disse pela terceira vez, diante do meu mutismo embaraçado.
- Esquece o quê?! O que é que estás a insinuar? - perguntei-lhe eu toda da cor das minha bochechas, como se um pouco de ira pudesse dar-me razão, tirar a dele ou disfarçar o caso.
Tlim… as portas do elevador a dispensarem palavras mágicas para se abrirem de par em par. E nós ali-babacas, a dois passos um do outro, dentro da caixa mágica, quando um novo tlim nos meus ouvidos fechou por completo aquela câmara frigorifica avariada. O ar mais quente ainda; as minhas bochechas mais rubras ainda e o silêncio a acelerar na razão inversa do elevador. Eu olhava para as minhas mãos. Ele, não sei para onde olhava. Nunca me tinha sentido tão apertada na vida. Um terceiro tlim; um solavanco; uma parede imóvel à nossa frente e uma chama silenciosa a queimar-nos vivos dentro daquele cubo mágico sem solução à vista.
Claro que pensava nele! Claro que ele sabia disso, ou não me teria feito a pergunta que fez! Claro que sim, ou eu ter-me-ia irritado de imediato assim que o seu dedo fez parar o elevador! Claro que sim, ou teria resistido à investida dos seus lábios gulosos na direcção dos meus! Claro que sim!
Nove andares e meio separavam-nos do restaurante do rés-do-chão, onde o resto da equipa já estaria a pedir o prato do dia, como de costume. Nove andares e meio; nove minutos e meio… nove semanas e meia.
Um esmagar de lábios incandescentes, contra o cinzeiro do desejo e a prova irrefutável no reflexo do espelho. Começava o filme, e nem banda sonora faltava: uma desenxabida música de elevador. Que raiva, ser tão fraca! - pensava a cada botão da minha blusa que abandonava a casa. - Odeio-me por isso! - enquanto os meus collants desciam até meio da perna. - Oh, valha-me Deus, onde é que eu estou com a cabeça? - e um cair de calças até à altura dos joelhos. - Penso nisso depois! - e a vontade a provar que qualquer ninho de vespas pode ser uma boa cama.
Um minuto; dois minutos; um sem fim; eternidade… O ajeitar de trapos apressado; o atar de cabelo a disfarçar o ar comprometido, como se o mundo nos tivesse visto em directo; um pouco de batom, e eu a perceber finalmente para que é que os elevadores têm espelhos. O olhar apalermado em volta à procura de manchas na saia, nas calças, no fundo dos olhos; o sair apresado inventando assunto e falando mais alto que o costume, num reflexo infantil impossível de controlar, e o vigilante do edifício sem perceber nada; o vigilante… a perceber tudo: - Bom apetite doutores! - como se perguntasse: - “Bom apetite, doutores?”. Malvado! Coitado! E o ar quente da tarde a refrescar-nos as faces denunciantes.
Um olhar apalermado. Um riso parvo. Nervoso. E uma vontade de lhe dizer: - Não quero que penses que sou gaja destas coisas! - como se me quisesse desculpar pela minha fraqueza, pelos meus desejos de mulher. Mas achei o cliché foleiro. Mas o que foi aquilo que nos aconteceu se não um cliché foleiro?
- Merda! Será que ele está apensar em alguma coisa? Então porque é que eu tenho de estar?
E a porta do restaurante a sorrir com malícia nas minhas bochechas condizentes com o letreiro da entrada.
- Merda! Porque é que tenho eu de me sentir culpada? Porquê nós sempre culpadas? Porquê nós… merda…eu!
- Então, só agora?! Perderam o elevador da uma? - atirou-nos um colega com ironia no arquear dos lábios.
O silêncio dos nossos olhos parados nos olhos curiosos de todos. Uma resposta simples. Mais uma resposta simples. Sim ou não? Uma infinidade de tempo. Nove segundos e meio de silêncio
- Não! - respondeu ele.
- Sim! - respondi eu.
1 comment:
estive 9 minutos e meio a pensar o que escrever, poderia ter sido 9 horas e meia, ou o segundos e meio ou quem sabe 9 dias e meio...e poderia ficar 9 eternidades e meia...
...de 0 a 10...
... 9.5
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