Há meses que o Valentim não me procura. Há meses que
também eu
perdi a coragem de
uma pontinha de pé nos pêlos das suas pernas, num miado de gata com…
Há meses
Fevereiro
28 para ser mais exacta
que o doutor Gama Seixas
- A senhora tem um cancro na mama.
que a vida se me cristalizou diante dos lábios, incrédulos
- Como?
- Dezoito milímetros dona Adélia. Temos de operá-la o quanto antes. E perca as ilusões de salvar o peito. Não há como arriscar.
E eu que nunca me descuidava com os exames; eu tão certinha e
- … perca as ilusões de salvar o peito.
como se negligência da minha parte, como se eu não me apalpasse, me conferisse, como se o Valentim
as mãos cegas do Valentim…
e uma raiva enorme a acumular-se em cada passo a caminho do autocarro
para Benfica
uma raiva enorme do Valentim que
de mãos no meu peito
sem me sentir
como se duas bolas de esponja para a fisioterapia das artroses. Uma raiva enorme porque nunca me prestou atenção; porque de tanto as apertar, de tanto puxar por elas
(como se eu a mãe que o deixou à porta da maternidade)
nunca sentiu nada a mais.
- Dezoito milímetros…
Por favor!
A sentir-me usada, abusada, negligenciada…
e uma raiva enorme a escorrer-me para o lenço: o último de um maço encetado na paragem
para Benfica
onde o decote da blusa ainda a ser alvo de olhares
embora eu
vontade de gritar
- Gostam do meu cancro, javardos?
com raiva, a senti-lo diminuir, desaparecer
e
dentro de uns dias
nenhuns olhos a procurarem o decote que
nunca mais coragem de usar
como nunca mais coragem para uma pontinha de pé nos pêlos das pernas do Valentim. Já lá vão uns meses
estamos em Agosto
22 para ser mais exacta
portanto, desde Fevereiro
28
um dia antes
para ser mais exacta
a 27, portanto
que o doutor Gama Seixas
- A senhora tem…
… um cancro…
Agosto
estamos em Agosto
e o calor a puxar por mim, pelos humores de mim, mas eu, a não querer ser mais rejeitada do que já me rejeito, a
nem uma pontinha de pé nos pêlos das pernas do Valentim
miado de gata com…
Nada!
- E com a luz apagada? - Eu a tentar junto de mim uma solução, uma abreviação. Mas a escuridão não apaga tudo, visto no lugar do peito apenas o lugar do peito, pois a reconstituição
- Um dia…
o doutor Gama Seixas
embora para destruir
- …o quanto antes.
mas para reconstruir, nenhum médico
- Temos de operá-la…
E o autocarro
a caminho de Benfica
a passar ao longo do cemitério
e eu
a doer-me por dentro
com vontade de agarrar-me a toda a gente, aos pés de toda a gente
a pedir
- Ajudem-me! Por favor, não me deixem morrer! Não quero morrer, por favor! Estou cheia de medo! Alguém me agarre, por amor de Deus!
a pedir
suplicar
para ser mais exacta
que tivessem pena de mim, que me ajudassem
se todos quisessem, se todos fizessem um esforço, se todos estivessem do meu lado
tudo mais fácil
tudo muito mais fácil.
Mas as caras apertadas, cheias das suas vidas, como se em cada peito um cancro, a bater em vez do coração
contagem decrescente
tum-tum, tum-tum
condenados todos.
E eu a querer chegar a casa, agarrar-me ao Valentim, na esperança de que ele me salvasse, de que ele me acordasse daquele pesadelo, de que ele…
um abraço
em silêncio
(não importa )
garantindo-me
- Foi um pesadelo, já passou!
caso não mo pudesse garantir
pelo menos
- Vai tudo correr bem. Não te preocupes. Eu estou aqui. Ao teu lado. Sempre!
Também já era pedir de mais!
Ou a minha mãe, que há anos tinha morrido
doze
para ser mais exacta
e que me faltava agora como nunca. Eu a querer voltar atrás, eu a prometer que me portaria bem, eu a jurar que faria tudo quanto ela ou Deus quisessem, eu a garantir que aprendera a lição, eu a qualquer coisa, a assinar a minha sentença de morte para me salvar
como quem se atira de um centésimo andar em chamas.
Mas nada!
A sala vazia
os quartos
eu toda
como a casa
a enrolar-me no sofá, como se nos braços de Deus, no útero materno, um instante de conforto, de protecção, couto almofadado onde nada me poderia tocar. Mas
- …um cancro…
não o jogo da apanhada. De modo que
dias depois
oito
para ser mais exacta
a acordar como uma amazona, numa floresta verde de cortinados desesperançados. A mão esquerda a procurar o seio direito, porque a direita não se podia mexer e
nada
apenas o lugar onde um dia
uma mulher completa
de encher o olho
o decote, alvo de olhares
e a enfermeira, toda sorrisos
- Como é que se sente?
com dois fartos seios apontando para mim, a encherem-me os olhos de lágrimas mutiladas.
- A operação correu muito bem! Daqui a uns dias já estará em sua casa.
Cinco
para ser mais exacta.
E agora, meses depois, o Valentim, como se eu um monstro
não uma amazona
um monstro
a não me procurar
e eu
sem coragem para uma pontinha de pé
uma pontinha pé nos pêlos das suas pernas.
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