E as tábuas das escadas
a que chamam degraus
a rangerem-me sob os pés, denunciando-me os passos aos outros hóspedes da pensão. Um resmungar que só lhes ouvia a altas horas da noite
talvez porque a dormirem já
a acordarem por minha causa
dos meus passos atordoados, pesados do vinho e do sono, no resmungar da velhice, dado que tudo o que é velho geme e resmunga.
Eu compreendo. Claro que compreendo. O dia todo para acima e para abaixo, no clep-clep fofo do tapete que lhe lhes abafa o queixume e não deixa que as agridam tanto. As escadas são de origem, e a pensão, de mil nove e tinta e nove. Passou-lhes a guerra para cima e para baixo
clep-clep
tapete nem meio tapete
que quando se é novo não se geme de queixa.
Mil nove e tinta e nove
a guerra
para cima e para baixo
de modo que agora
qualquer coisinha
os nervos à flor da cera
especialmente à noite
quando o silêncio amplifica o tamanho e o peso dos homens, e o tapete não chega para lhes amordaçar o queixume.
Mas eu não posso vir mais cedo. Compreendam vocês também que eu não posso
mais cedo
pois se me deito sem sono, ou sóbrio, penso na vida que não tenho. E porque o pensá-lo é sinal de estar vivo, entro em conflito comigo, porquanto não entendo o paradoxo de estar vivo e não ter vida. Entendem? Nem eu! Eu prometo descalçar-me à entrada
é isso
descalçar-me à entrada
aliviar o passo…
Ai é a mesma coisa? Então se é a mesma coisa não me chateiem e muito boa noite, que pago as minhas contas e tenho mais que fazer que gastar latim com um xilofone de tábuas desafinadas. Ora não querem lá ver! Não é o meu dinheiro como o dos outros? Tudo igual, minhas queridas! Só mudam os horários.
Não posso vir mais cedo! Caramba, já disse que não posso vir mais cedo, que inferno! Se me deito sem sono… sóbrio… penso na vida… sinal de estar vivo… conflito comigo
ou conflituo comigo
que às vezes não há diferença entre substantivos e verbos, quer existam quer não. Isto para verem que não sou nenhum inculto que para aqui ando. Só não posso é deitar-me sem sono
sóbrio
porque penso na vida que não tenho. E depois
conflito
como em mil nove e trinta e nove
sabem como foi
que também é sinal de estar vivo
paradoxo
estar vivo e não ter vida.
Entendem?
Eu sei que são velhas e têm direito ao sossego e ao silêncio da noite, mas olhem, estudassem, se queriam ser escadas de púlpito, que essas sim são só para enfeitar, pois sermões é coisa para dar aos peixes, e, para lhes chegar, não são vocês precisas para nada. Se fossem escadas de quinta a esta hora estavam deitadinhas no celeiro a dormir o sono dos justos, nas palhinhas como o menino, que também é filho de carpinteiro. Mas, e então?! Também eu se fosse mais fino não dormia no segundo andar desta espelunca. Dormia no Ritz, no Palace.
Ah que Deus, daqui a nada são sete da amanhã e já começa o para baixo e para cima dos que têm ou não têm que fazer. Que tenho eu com isso? Os guardas-nocturnos também dormem de dia, tal como as raparigas de má fama. E se eu fosse um desses? Hum? Como é que era, se eu fosse um nocturno de má fama, ou um guarda-raparigas? Hum? Ah, não dizem nada!
Eu que até tenho consideração, que até suavizo o peso, respirando pouco
e olhem que quatro lances de pulmões vazios não é brincadeira
disposto até a descalçar-me à entrada
aliviar o passo…
Agora se é a mesma coisa… boa noite!
E ao chegar ao quarto, a porta
uiiiick
a ranger, denunciando os meus gestos aos outros hóspedes da pensão. Também ela estava a dormir. Também ela a resmungar. Também a ela lhe passou a guerra de um lado para o outro. E eu que não casei para não ter quem me controlasse os passos, os gestos, as horas e no fim dá nisto. Irra! Mais um copo ou dois e não lhes ligava peva, agora assim, no intermédio da razão… Anda-se um homem a poupar para quê? Para ter chatices, é o que é!
Mais um copo ou dois e nem escadas nem porta, nem o raio que as partisse: uma auto-estrada sem portagens do balcão à tarimba. Agora assim tudo manda vir com um homem
que ninguém percebe isto de estar vivo e não ter vida
o paradoxo
e ao pensá-lo, olho para a cama, quieta, no seu sono madeira e molas
(a ela não lhe passou a guerra por cima).
Pelo menos a de mil nove e trinta e nove!
Passaram outras
que numa cama só há paz depois da guerra.
Sento-me à beirinha, procurando não a acordar, levanto um pé
nhec
numa demora de preguiça a trepar à árvore
pata a pata
outro pé
nheeeec
a acordá-la por fim, num rabujar de madeira e molas…
Deito-me vestido. Estou quentinho, quero que se lixe. Fecho os olhos
os ouvido não consigo
nhec-nhec…
a respirar devagarinho para não despertar nela a fúria de esposa amuada pelo despertar do sono, pelo tarde das horas, pelo cheiro a álcool, a fingir-me adormecido já, mas o ranger, como um resmungar enervante de esposa nos meus ouvidos
nhec-nhec… nhec-nhec … nhec-nhec …
como que
- E não finjas que estás a dormir. Não faças que não me ouves.
nhec-nhec… nhec-nhec … nhec-nhec …
Era mais um copo ou dois… agora assim, no intermédio da razão…
nhec-nhec… nhec-nhec … nhec-nhec …
- São isto horas de me vir acordar? Lá porque pagas as contas achas que tenho de estar sempre pronta para levar contigo em cima?
nhec-nhec… nhec-nhec … nhec-nhec …
E eu que não casei para não ter quem me controlasse os passos, os gestos, as horas e no fim… Mais um copo ou dois e podia nhecnhecar à vontade que eu
peva
agora assim, no intermédio da razão… Anda-se um homem a poupar para quê? Para ter chatices, é o que é!
Arre porra que é demais!
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