- A sua esmola, por favor! Tenha a bondade de me auxiliar com a sua esmola, por favor!
e um encolher agitado ao longo da carruagem ante a voz cega que
- A sua esmola, por favor!
um baixar de olhos, disfarçando a presença, não fosse o cego dar por eles. Não que não fossem bondosos, mas nem sempre podiam ter
- … a bondade de…auxiliar…
Eu vinha de casa do David e trazia a derrota do mundo aos ombros. A voz do cego nos meus ouvidos era uma melopeia distante que se misturava com a minha dor de cabeça em variações de intensidade. Não me encolhi. Já estava encolhida.
Não por causa da voz
- A sua esmola, por favor!
mas porque
de casa do David
não porque
- Tenha a bondade de me auxiliar…
mas porque
a derrota do mundo aos ombros.
Já estava encolhida. O meu corpo, naquele momento, dez números acima de mim, como o vestido verde da mamã que eu adorava. Por isso
Não me encolhi.
Pouco me importava que o cego me visse com a ponta do bastão. Pouco me importava que os encolhidos… o que quer que fosse. Pouco me importava qualquer coisa depois do David
- Arrefeceu, Anita!
depois do David
- Já não sinto o que sentia, Anita.
com o meu nome em rimas constantes, verso após verso, num poema de desamor perfeito; na voz declamatória do David
- É melhor ficarmos por aqui, Anita.
decidindo pelos dois
apesar de eu
- A sua esmola, por favor!
o David
- Por favor, não insistas, Anita!
e eu
ou o cego
baralho-me já
- Tenha a bondade de me auxiliar com a sua esmola, por favor!
- Não insista, senhor! - dito num encolher de corpos
- Não vê que está a incomodar toda a gente?
E claro que não via
claro que não via que
- Não vês…
claro que não via que
- … não dá mais, Anita!
No banco em frente ao meu, uma senhora dilatada, usurpava quase todo o espaço do assento de um homenzinho enfezado, quase invisível, que se se encolhesse ao toque do cornetim
- A sua esmola, por favor!
desaparecia por completo da superfície da Terra. Aquele não havia o bastão de encontrar. A senhora encolhera-se o quanto podia, mas porque não podia encolher-se mais, meteu a mão à carteira, num catar de moedas
a voz do cego cada ver mais próxima
- A sua esmola, por favor!
numa ameaça de sargento que passa revista à formatura
- Tenha a bondade de me auxiliar com a sua esmola, por favor!
cada vez mais próxima
não por bondade
mas porque não podia encolher-se mais
esconder-se do bastão
cada vez mais próximo
- …por favor!
e as moedas aflitas, num vasculhar de dedos, encolhendo-se aos cantos da carteira, baixando os olhos, disfarçando a presença
as pequenas apenas, que as grandes a nunca serem chamadas para a linha da frente
que as grandes
- É melhor ficarmos por aqui…
- …Anita.
uma moeda a responder por mim ao chamado
- …Anita.
a rima forçada num poema de desamor
perfeito
- …Anita.
- … sua esmola, por favor!
- David!
- …não insistas…
- Mas, David…
- Não vê que está a incomodar toda a gente?
- Não me trates por você, David, porra!
- Não vê…toda a gente?
e claro que não via
- … toda a gente…
como as moedas, aos cantos da carteira
- Vai tu.
- Vai à merda, David!
(as pequenas apenas…)
num vasculhar de dedos
cinco bastões grossos, de um lado para o outro
- Tenha a bondade…, por favor!
cinco bastões
pouca chance de escapar
porque a senhora não podia encolher-se mais
porque a voz
- …a sua esmola, por favor!
porque o bastão
na sua perna dilatada
toc toc
ou lá como fazem os clarins para a formatura
toc toc
- …a sua esmola…
num contrariar de dedos rumo a uma caixinha sinistra
toc toc
ou lá como fazem as moedas
(as pequenas apenas…)
(…que as grandes…)
- É melhor ficarmos por aqui…
e um “bem-haja!”, repetido, completamente às escuras, mecânico, como um
toc toc
afastando-se
toc toc
num desprender de respirações, num desencolher de corpos. Porque o toc toc
um, dois, três, macaquinho do chinês, a diluir-se na imensidão de sons, completamente às escuras.
Não me desencolhi.
Ainda que quisesse…
Não me desencolhi.
O meu corpo…, dez números acima, como o vestido verde… que eu adorava.
Pouco me importava que o cego… que os encolhidos… o que quer que fosse. Pouco me importava qualquer coisa depois de
- A sua esmola, por favor!
depois de
- Não insistas, Anita!
2 comments:
muito bom!
tb acho, muito bom!
q tenhas sempre a bondade de nos auxiliar com estes textos q tão bem retratam a realidade.
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