Quando a minha mãe caiu à cama, foi como se de repente uma tesoura gelada cortasse a fita de cinema, a mim por dentro, aos pedacinhos, deixando por ali o filme da minha vida. O que será que se iria passar depois do cavalheiro de chapéu, para a menina de óculos grossos
- Queres casar comigo, Dina?
O que será que se iria passar se a tesoura gelada
a trombose
não AVC
como os médicos a quererem-me convencer
- Um AVC.
não tivesse cortado a fita de cinema, a mim por dentro, aos pedacinhos? Será que
- Queres casar comigo, Dina?
em vez de
- Dina!
- Sim, mãe, já vou.
num destino impossível de despistar.
Nós as duas ali sozinhas. Que é como quem diz, eu ali sozinha, porque a minha mãe
- Se não fosse a filha… Coitadinha da Idalina! - as vizinha a dizê-lo, não eu
tinha-me a mim, por companhia.
Portanto, eu ali sozinha, que os meus irmãos, dois, Estados Unidos e Canadá, nunca foram muito apegados à família, principalmente depois do papá
- Sim, aceito.
pela segunda vez, e a minha mãe, de ventre ovalado, a dar-me à luz onze meses depois.
… nós as duas ali sozinhas…
desde sempre
…ali sozinhas…
dado o papá para Setúbal a semana toda e os meus irmãos a caminho da América com uma tia que haveria de fazer deles uns homens.
Nunca os vi. E tinha visto. Mas era como se não
porque apenas cinco anos
e ainda pouco espaço na memória
uma única vez,
apenas cinco anos
poucos dias depois da minha mãe
- Ai, valha-me Nossa Senhora!
ante a notícia da queda de um andaime para as bandas de Setúbal.
- … Coitadinha da Idalina!
e eles logo a regressarem
num relâmpago
aos Estados Unidos (na altura apenas Estados Unidos), com a que estava a fazer deles uns homens.
e
porque num relâmpago
não posso dizer que os vi
portanto
Nunca os vi. E tinha visto.
De novo sozinhas
até ao dia em que
eu … sozinha, porque a minha mãe
- … Se não fosse a filha…
uma tesoura gelada
de repente
a cortar a fita de cinema, a mim por dentro, aos pedacinhos e
por ali o filme da minha vida.
… será que… o cavalheiro de chapéu
- Queres casar comigo, Dina?
e a menina de óculos grossos
- Dina!
- Sim, mãe, já vou.
Será que
- Queres?
se a tesoura gelada
(a trombose
não AVC
como os médicos a quererem-me convencer
- Um AVC.
E eu a saber que AVC nenhum
trombose, isso sim, que AVC é doença de ricos, e nós nem ricos nem cá de modas.)
não tivesse cortado a fita de cinema, a mim por dentro, aos pedacinhos?
Será que
o cavalhe iro de chapéu… a menina de óculos grossos
- …Dina?
- Sim…
(e apenas isto. Apenas esta parte. Por favor, apenas mais um bocadinho de fita. Por amor de Deus, só mais dois segundos, esta quase naquela parte. Por favor, por favor!)
Mas a tesoura impiedosa, surda aos meus rogos
porque a trombose
AVC nenhum
que isto é doença a sério, não de plástico, de faz de conta, de vamos brincar aos médicos
- Então diga lá, o que tem a sua boneca?
- Não sei doutora, está paradinha de um lado e quase não se consegue mexer.
- Hum, estou a ver. Um AVC, portanto!
Para o Diabo mais o AVC
porque uma trombose
porque só as tromboses, como as tesouras surdas ao rogos das meninas de óculos grossos
Zás
Sem qualquer aviso
como os andaimes para as bandas de Setúbal, folhas de Outono
e a minha mãe boneca alguma
faz de conta algum
uma trombose, que isso sim é doença de gente. De gente velha. Setenta e oito, quase oitenta. E digo isto porque, raiva da doença, não da minha mãe, da doença, porque uma coisa que deixa uma pessoa assim, que corta a fita de cinema, a mim por dentro, não pode chamar-se simplesmente AVC. Tem de ter um nome à séria, de criminoso sem escrúpulos: trombose, tuberculose, tremor de terra como
- Dina!
na voz arruinada da dona Idalina
não de uma boneca
- Dina!
- Sim, mãe, já vou.
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