Sunday, March 18, 2007

Em mim ninguém manda

- Estive na guerra, em mim ninguém manda! - e acrescentava - Só o sargento Gomes, se fosse vivo, por isso…

entendesse-se

- …ninguém manda!

entendesse-se

- …ninguém…

entendesse-se

- …andor!

e lá seguia, às arrecuas na cadeira, praça afora, com uma garrafa de vinho por companhia; não um cão, que os cães não adormecem as dores, não toldam as vergonhas, as frustrações

os cães são para quem tem medo e

- Não tenho medo de ninguém!

por isso

uma garrafa de vinho.

Por ali passava os dias e as noites, dormindo sentado, quando não caía da cadeira a baixo. Cadeira que por sorte, um peditório dos bombeiros, a generosidade de muita gente

pelo homem

(meio homem, para ser mais exacto)

que se arrasta

coitado

pelas ruas, porque as pernas morreram em África e por lá ficaram.

Será que alguém lhes punha flores?

Afinal, era quase metade de um homem morto! Se fosse a outra metade, com certeza que uma flor ou outra.

Nem que apenas a vinte e cinco do quarto!

Mas um homem só é homem das coxas para cima.

- O senhor não pode estar aqui a perturbar a ordem pública. - um agente da polícia a chamá-lo à atenção. Um agente da polícia que desconhecia que

- …em mim ninguém manda!

um agente da polícia, não o sargento Gomes, que esse, ficou por completo para os lados do Huambo, junto com umas pernas dormentes, e por isso

- …ninguém…

- Já lhe disse, que não pode… - o agente a repetir o dito, sem compreender que

- Estive na guerra, em mim ninguém manda!

e além do mais

- …medo de ninguém!

Não se vê logo…

…uma garrafa em vez de um cão?

Por isso

- … andor!

E o agente, um fedelho ainda a borrar a fralda quando a mina

Bum

e metade de um homem para cada lado.

Devem ter começado a gatinhar mais ou menos na mesma altura: uns trinta anos, mais ou menos. Visto que a cara o agente não mais do que isso e, no braço do combatente

(porque um dia combatente, combatente a vida toda. Principalmente meio homem como ele; um combate diário contra a invisibilidade de si mesmo)

e,

no braço do combatente

Angola 13/8/73

Por vezes devia acreditar que tinha as pernas. Que estava completo. Em sonhos a correr; quem sabe a andar sobre as águas. Porque as pernas, uma questão de fé, e Deus um par de pernas amputadas, gritando

- Presente!

ainda que não se Veja, não se Sinta, não nos Leve a lado nenhum.

Se calhar podia andar. Se ousasse, se se levantasse como Lázaro. Mais fácil até, pois morto apenas das coxas para baixo. E se tivesse muita fé. Talvez lhe nascessem pernas novas

melhores que as que deixou em África, sem cruz nem flores.

Não é o que acontece a quem acredita mesmo muito em Deus?

Mas nele ninguém mandava, e Deus não era o sargento Gomes, ainda que não estivesse de melhor saúde.

E lá foi

porque lhe deu na bolha

não porque causa do agente

às arrecuas, pela praça afora, com uma garrafa de vinho por companhia

não um cão, que os cães não adormecem as dores, não… as vergonhas… frustrações

pela praça afora

até à escadaria do teatro, onde um grito de raiva o pôs “de pé”, sobre os cotos (o fim de si mesmo), com a garrafa de vinho

não um cão

a garrafa de vinho, uma G3 apontada a um grupo de homens, a disparar com raiva

- Pretos dum cabrão! Acabo-vos com a raça!

e

RATATATA

pela goela a baixo, numa rajada sentida, num suicídio lento, de um homem que tinha morrido junto das suas pernas, mas a quem se recusaram enterrar porque ainda parecia vivo

ou não teriam dito

- Amanhã segues para Portugal.

e as lágrimas a rasgarem-lhe o rosto, como silvas do mato, pois alguém tinha de chorar por si; fazer o luto.

RATATATA

e não era preciso muito para o coma voltar. Meio homem embebeda-se muito mais facilmente, com a vantagem de já não lhe voltarem a faltar as pernas.

RATATATA

até ao fim das munições.

Mas o grupo de homens a sobreviver. Nenhum ferimento (pelo menos visível), apesar de

- Pretos dum Cabrão!

e as munições no fim; o soldado desarmado, apenas uma granada de mão contra o chão de calçada, ou de terra batida.

Bum

E mil estilhaços de vidro com odor a vinho ou a pólvora

não a cão

que os cães não adormecem as dores, não toldam as vergonhas, as frustrações, logo

a vinho

que esse sim, mata um homem por inteiro; ao contrário da pólvora, apenas pela metade.

A vinho

invisível

como as pernas de um homem

(meio homem, para ser mais exacto)

que não temia a morte, os agentes da polícia, a voz de Deus ou os pretos do teatro.

- Só o sargento Gomes, se fosse vivo…

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