Friday, January 05, 2007

Talvez um dia destes

E eu que até nem gostava dele! Não entendo. Faz dois anos que

- Dona Alda?

- Sim, quem fala?

- É o Figueiredo. Tenho uma notícia para lhe dar.

e eu a compreender, pelo tom de voz (não que a do Figueiredo me fosse familiar), mas pelo tom de voz, que o Aguinaldo tinha morrido. Tinha cinquenta e três anos e eu, mais quatro.

- Tenho uma notícia para lhe dar.

e eu a compreender, pelo tom de voz

e eu

- Obrigada.

sem saber se agradecia ao Figueiredo, se a Deus, se apenas uma expressão independente de mim a moldar-me a voz

- Obrigada.

apesar de não ficar contente. E eu que até nem gostava dele. Eu que até era uma parva nas suas mãos, apesar de mais quatro anos. Quatro anos e o tempo um substantivo sem significado. Uma parva. E ainda assim a deixar-me ficar.

- Mas quando é que alivias o luto, rapariga?

a Marília para mim, um ano depois de

- Tenho uma notícia para lhe dar.

e ainda assim a deixar-me ficar, apesar de

- O Luto dá-lhe um ar tão pesado, dona Alda! Fá-la parecer muito mais velha. E ainda é tão nova! - o Figueiredo todo cuidados, na sua companhia de pastor alemão desde que o Aguinaldo

- Despistou-se, dona Alda. Ninguém sabe como foi.

desde que eu

- Obrigada.

sem saber se agradecia ao Figueiredo, se a Deus, se apenas uma expressão independente de mim a moldar-me a voz

- Obrigada

apesar de não ficar contente. E eu que até nem gostava dele. Eu que até era uma parva nas suas mãos, apesar de mais quatro anos.

- … dona Alda.

o Figueiredo sempre

- …dona Alda.

sempre

- Muito obrigado!

sempre

- Se faz favor.

sempre

- Com licença.

sempre

- Tenha a bondade.

ao contrário do Aguinaldo, que me tratava pior que à empregada, a idade da nossa filha que me morreu no ventre, ainda (coitadinha!), porque

- O útero…

não sei bem explicar, um papel em cima da secretária do doutor

- O útero…

como dizê-lo

- O útero…

uma cabeça de carneiro a pingar sangue, quer dizer, faz de conta, uma tinta vermelha para me explicar melhor, e ao meu marido (digo assim apesar de nunca termos assinado papeis)

- Por outras palavras, o útero rasgou. Tem as paredes fracas. Não aguenta os fetos.

e por isso

nunca mais um filho, uma filha (coitadinha). Talvez por isso o Aguinaldo todo mesuras com ela. Porque lhe fazia lembrar a filha. Porque mais haveria de ser?

- Obrigada senhor Aguinaldo!

e quando eu

- Está-te a agradecer o quê?

apenas um

- Mete-te na tua vida!

e não se falava mais no assunto até que de novo

- Óh, senhor Aguinaldo, não era preciso! Muito Obrigada!

e eu

- …a agradecer o quê?

- … na tua vida!

porque lhe fazia lembrar a filha que o meu ventre (coitadinho) lhe negou. E se eu, uma lenta aproximação, uma mão no ombro do pijama, um arrastar de perna carente (talvez apenas frio)

… eu que até nem gostava dele!

(talvez apenas frio), por entre as suas, de imediato a calar o silêncio gelado dos lençóis

- Não me chateies, Alda, tenho sono.

Não que não me quisesse. Apenas sono. Se não me quisesse creio que me dizia. Mas unicamente

- … tenho sono

a afastar-me com a sua mão avinagrada, se calhar não a afastar-me, a impedir-me apenas que me aproximasse mais e lhe espantasse o sono. Sono que eu não tinha e que chegava quase sempre com a madrugada. E por isso, eu para ali, como um lençol pela manhã, morno, engelhado e com um desagradável cheiro de corpo por usar. Eu a importar-me. Não sei porquê.

… eu que até nem gostava dele!

a importar-me até hoje, dois anos depois. A não conseguir pintar o cabelo, vestir uma roupa mais leve, dado que esta

- …um ar tão pesado, dona Alda! Fá-la parecer muito mais velha.

e eu ainda tão nova

pelo menos o Figueiredo

- E ainda é tão nova!

a recusar convites para jantares, para festas, até que os convites a desistirem de mim a pouco e pouco, como uma criança a desistir do choro que não lhe traz uma fralda enxuta.

Que desistam do choro os convites todos. Não é por ele, é por mim. Não quero passar por viúva-alegre. Isso é lá comigo. Talvez um dia destes (se o Figueiredo não desistir. Não desiste. Deus queira…), aceito o convite

- Sim, dona Alda?

eu

- Sim!

a um jantar, porque não? Ou

- Um espectáculo no Casino do Estoril, dona Alda. Com o Fernando Pereira. Tenho dois convites.

talvez um dia destes a Marília

- Eh, lá! És oito ou oitenta!

Talvez o próprio Aguinaldo não me reconheça, quando um dia destes for ao Alto de São João levar-lhe flores, de cabelo caju, sainha clara, pregada, por cima do joelho e um decotezinho, discreto, só para que o coração respire melhor, e talvez morra outra vez, que mal nenhum lhe fazia morrer meia dúzia de vezes. E eu que não desejo mal a ninguém, nem aos vivos, quanto mais. Talvez, um dia destes. Mas hoje ainda não, que faz dois anos que

- Dona Alda?

- É o Figueiredo. Tenho uma notícia para lhe dar.

Hoje ainda vou de preto. Com um raminho de crisântemos brancos. Só por uma questão de… falta-me a palavra… respeito, pronto, por mais nada, porque eu

- … até nem gostava dele!

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