E eu que até nem gostava dele! Não entendo. Faz dois anos que
- Dona Alda?
- Sim, quem fala?
- É o Figueiredo. Tenho uma notícia para lhe dar.
e eu a compreender, pelo tom de voz (não que a do Figueiredo me fosse familiar), mas pelo tom de voz, que o Aguinaldo tinha morrido. Tinha cinquenta e três anos e eu, mais quatro.
- Tenho uma notícia para lhe dar.
e eu a compreender, pelo tom de voz
e eu
- Obrigada.
sem saber se agradecia ao Figueiredo, se a Deus, se apenas uma expressão independente de mim a moldar-me a voz
- Obrigada.
apesar de não ficar contente. E eu que até nem gostava dele. Eu que até era uma parva nas suas mãos, apesar de mais quatro anos. Quatro anos e o tempo um substantivo sem significado. Uma parva. E ainda assim a deixar-me ficar.
- Mas quando é que alivias o luto, rapariga?
a Marília para mim, um ano depois de
- Tenho uma notícia para lhe dar.
e ainda assim a deixar-me ficar, apesar de
- O Luto dá-lhe um ar tão pesado, dona Alda! Fá-la parecer muito mais velha. E ainda é tão nova! - o Figueiredo todo cuidados, na sua companhia de pastor alemão desde que o Aguinaldo
- Despistou-se, dona Alda. Ninguém sabe como foi.
desde que eu
- Obrigada.
sem saber se agradecia ao Figueiredo, se a Deus, se apenas uma expressão independente de mim a moldar-me a voz
- Obrigada
apesar de não ficar contente. E eu que até nem gostava dele. Eu que até era uma parva nas suas mãos, apesar de mais quatro anos.
- … dona Alda.
o Figueiredo sempre
- …dona Alda.
sempre
- Muito obrigado!
sempre
- Se faz favor.
sempre
- Com licença.
sempre
- Tenha a bondade.
ao contrário do Aguinaldo, que me tratava pior que à empregada, a idade da nossa filha que me morreu no ventre, ainda (coitadinha!), porque
- O útero…
não sei bem explicar, um papel em cima da secretária do doutor
- O útero…
como dizê-lo
- O útero…
uma cabeça de carneiro a pingar sangue, quer dizer, faz de conta, uma tinta vermelha para me explicar melhor, e ao meu marido (digo assim apesar de nunca termos assinado papeis)
- Por outras palavras, o útero rasgou. Tem as paredes fracas. Não aguenta os fetos.
e por isso
nunca mais um filho, uma filha (coitadinha). Talvez por isso o Aguinaldo todo mesuras com ela. Porque lhe fazia lembrar a filha. Porque mais haveria de ser?
- Obrigada senhor Aguinaldo!
e quando eu
- Está-te a agradecer o quê?
apenas um
- Mete-te na tua vida!
e não se falava mais no assunto até que de novo
- Óh, senhor Aguinaldo, não era preciso! Muito Obrigada!
e eu
- …a agradecer o quê?
- … na tua vida!
porque lhe fazia lembrar a filha que o meu ventre (coitadinho) lhe negou. E se eu, uma lenta aproximação, uma mão no ombro do pijama, um arrastar de perna carente (talvez apenas frio)
… eu que até nem gostava dele!
(talvez apenas frio), por entre as suas, de imediato a calar o silêncio gelado dos lençóis
- Não me chateies, Alda, tenho sono.
Não que não me quisesse. Apenas sono. Se não me quisesse creio que me dizia. Mas unicamente
- … tenho sono
a afastar-me com a sua mão avinagrada, se calhar não a afastar-me, a impedir-me apenas que me aproximasse mais e lhe espantasse o sono. Sono que eu não tinha e que chegava quase sempre com a madrugada. E por isso, eu para ali, como um lençol pela manhã, morno, engelhado e com um desagradável cheiro de corpo por usar. Eu a importar-me. Não sei porquê.
… eu que até nem gostava dele!
a importar-me até hoje, dois anos depois. A não conseguir pintar o cabelo, vestir uma roupa mais leve, dado que esta
- …um ar tão pesado, dona Alda! Fá-la parecer muito mais velha.
e eu ainda tão nova
pelo menos o Figueiredo
- E ainda é tão nova!
a recusar convites para jantares, para festas, até que os convites a desistirem de mim a pouco e pouco, como uma criança a desistir do choro que não lhe traz uma fralda enxuta.
Que desistam do choro os convites todos. Não é por ele, é por mim. Não quero passar por viúva-alegre. Isso é lá comigo. Talvez um dia destes (se o Figueiredo não desistir. Não desiste. Deus queira…), aceito o convite
- Sim, dona Alda?
eu
- Sim!
a um jantar, porque não? Ou
- Um espectáculo no Casino do Estoril, dona Alda. Com o Fernando Pereira. Tenho dois convites.
talvez um dia destes a Marília
- Eh, lá! És oito ou oitenta!
Talvez o próprio Aguinaldo não me reconheça, quando um dia destes for ao Alto de São João levar-lhe flores, de cabelo caju, sainha clara, pregada, por cima do joelho e um decotezinho, discreto, só para que o coração respire melhor, e talvez morra outra vez, que mal nenhum lhe fazia morrer meia dúzia de vezes. E eu que não desejo mal a ninguém, nem aos vivos, quanto mais. Talvez, um dia destes. Mas hoje ainda não, que faz dois anos que
- Dona Alda?
…
- É o Figueiredo. Tenho uma notícia para lhe dar.
Hoje ainda vou de preto. Com um raminho de crisântemos brancos. Só por uma questão de… falta-me a palavra… respeito, pronto, por mais nada, porque eu
- … até nem gostava dele!
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