Ela chegava num toc toc de subir de escada, no seu passo absoluto, toda sapatos, enorme como uma estátua de bronze, e metia a chave à porta de uma vez só. Nessa altura já eu estava a caminho das cebolas para começar a chorar antes que fosse preciso bater-me.
- Olá fofinho, a mamã chegou! - numa voz de sargento rente à reforma.
- Olá fofinho… - sempre assim que me chamava.
- …a mamã… - como se tratava a si.
- … chegou!
e eu com vontade de lhe gritar da cozinha que ela não era a minha mãe, mas, em vez disso
- Olá fofinha!
e não
- Tu não és minha mãe! - como era de minha vontade. - Tu és um monstro!
e no entanto, unicamente
- Olá fofinha! - encolhido como a cauda de um cão assustada, agarrado à cebola para começar a chorar
- …a mamã chegou!
sem que fosse minha mãe, pois a mamã
uma mulher delicada; uma boneca de porcelana com rugas de cola porque o meu pai
- Para a próxima levas mais!
e para a próxima levava igual, porque mais não podia ser.
- Para a próxima…
e a minha mãe a apanhar os seus próprios cacos do chão, e a levá-los na concha das mãos, como se aparasse lágrimas
mas apenas cacos
para o fundo do quarto; para os colar de novo no sítio; para a próxima.
- Olá fofinho, a mamã chegou! - numa voz de sargento…
… rente à reforma.
e eu na cozinha, preso à ponta de uma cebola, como uma rama mole, impotente, com vontade de
- Tu não és minha mãe!
- …fofinha!
- Tu és um monstro!
- …fofinha!
mas uma fila de dentes enormes, tortos e amarelados na minha direcção a desaparecerem num alongar de lábios pintados.
- Então o que é a papa?
- Veneno para os ratos! - aquilo que me apetecia dizer, e a sair-me, num refogado de cobardia
- Bifinhos de cebolada.
- Bifinhos de cebolada?! - como se eu tivesse efectivamente dito
- Veneno para os ratos!
- Querias outra coisa, fofinha?
e uma fila de dentes enormes, tortos e amarelados na minha direcção, a não desaparecerem num alongar de lábios, e a mascarem palavras, indigestas, como se me mascassem a mim, ainda que não se ouvisse mais que
- Não, fofinho! Está óptimo! Estou mortinha de fome!
num silêncio que apenas eu sabia ouvir
- Mas é todos os dias a mesma merda? Não sabes fazer mais nada meu anormal?
ainda que só
- Não, fofinho! Está óptimo!
da mesma forma que eu
- Bifinhos de cebolada.
em vez de
- Veneno para os ratos!
- … meu anormal…
e o silêncio, a ressoar no ar da cozinha, num mascar de palavras
indigestas
a mascar-me a mim
- Tens tanta imaginação para fazer comida como para escrever livros! É por isso que ninguém te pega!
- …fofinho! Está óptimo!
não na voz de sargento rente à reforma
- Para a próxima…
apenas
- …fofinho!
- …óptimo!
ainda que nos meus ouvidos
- O que seria de ti, meu desgraçado, sem mim?!
e a resposta a não me surgir, porque a pergunta… o silêncio que apenas eu sabia ouvir
no ar da cozinha
na minha cabeça
no ar
- Veneno para os ratos!
- Está óptimo!
- Fofinh…
e eu a não compreender porque dissera
- Sim.
quando o padre me perguntou
- Aceitas para tua legítima esposa este monstro?
perguntando
no silêncio que apenas eu sabia ouvir
- Aceitas para tua legítima esposa o teu pai.
… a não compreender porque…
- Sim.
- Sim, aceito.
porque o medo é uma estátua de bronze a subir as escadas, não em tacão raso; em bota de cano alto. Porque o medo é uma boneca de porcelana em mil bocados espalhados pelo universo da minha infância. Porque o medo é uma mão cheia de cacos apanhados do chão, como lágrimas, rumo ao fundo do quarto. Porque o medo é uma cauda de cão assustada, preso à ponta de uma cebola, como uma rama mole, impotente, incapaz de dizer
- Não!
porque o medo são olhos abertos, máximos de TIR a espantar-me para os arbustos da casa de banho, que é como quem diz, para dentro de um sapato, quietinho, num silêncio de pulga, porque o medo é…
- Para a próxima…
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