Friday, January 05, 2007

Crónica em dó menor

- Todos os acordes menores são tristes.

confessou-me o professor de piano, a meia voz, como se um grande segredo

- Todos os acordes menores são tristes.

um segredo igual àquele que lhe acompanhava a mão suada pela minha perna acima até ao interior dos calções, enquanto

- Muito bem! Muito bem!

apesar de eu tenso, encolhido

- Muito bem!

convencendo a minha mãe que eu haveria de ser um grande pianista. E eu a não distinguir as teclas brancas das pretas, porque

tenso, encolhido

apesar de

- Muito bem!

convencendo a minha mãe porque

- Muito bem!

e a minha mãe vaidosa, como se fosse ela própria a elogiada, na vaidade própria das mães, principalmente aquelas às quais nunca lhe foi sussurrado ao ouvido

- Muito bem! Muito bem!

e a minha mãe vaidosa, como se

ela própria dentro dos calções

- Muito bem!

No ano em que o meu pai morreu, eu dez anos, acabaram-se as aulas de dedilhado pelas pernas acima. Depois desse dia, não voltei a abrir a tampa de um piano

- É que ele associa o piano ao caixão do pai. Entende?

o psicólogo a explicar à minha mãe a minha súbita aversão ao instrumento de tortura em que se tinha tornado aquele armário de teclas.

- Imagina que se abrir a tampa do piano vai dar de caras com o pai morto.

e a boca da minha mãe, incrédula, ante a brilhante associação do doutor.

- … vai dar de caras com o pai morto.

- E o que há a fazer, doutor?

- Isso vai ser um processo moroso. Teremos de trabalhar o luto. Mas não se preocupe.

e a minha mãe a ficar descansada, porque o Doutor

- … não se preocupe.

a minha mãe não se preocupou e o dinheiro das aulas do professor transferiu-se para a conta do especialista em desmistificar pais mortos em forma de código de barras. Fato preto, gravata preta, camisa branca. Igual a Fá sustenido, Sol sustenido, Dó absoluto.

E, apesar de

- Faz…

(um piano,

o teu pai,

a Capela Sistina,

os planos do desembarque na Normandia,

num)

- … desenho à tua escolha.

a verdade é que, desde o dia em que o meu pai

- Que morte tão estúpida!

que não abria a tampa de um piano, e passava-lhes sempre ao lado, porque…

… uma mão suada pela minha perna acima até ao interior dos calções, uma mão cheia de dedos descarados a afirmarem, com aquela boquinha pequenina que os dedos têm

- Muito bem!

cinco vezes, um de cada vez

- Muito bem!

e outra mão cúmplice, porque silenciosa, na aba do piano, com aquela boquinha pequenina que os dedos têm, sem dizer nada, conivente com o

- Muito bem!

da outra

em vez de

- Dona Adília, venha cá depressa que o seu filho

ou

- … o professor do seu filho…

enquanto eu a não querer desiludir a minha mãe que

- Não houve um homem na vida que não me tivesse desiludido!

por isso eu

Dó menor, Ré menor, Mi menor

cada vez menor

dado que

- Todos os acordes menores são tristes.

e eu um acorde cada vez mais triste, cada vez menor, sem distinguir as teclas pretas das brancas embora

- Muito bem!

eu um piano desconjuntado, de pernas tensas, encolhidas, tocado pelos dedos ágeis daquela aranha gigante em forma de professor sussurrante

- Muito bem! Muito bem!

até ao dia em que o meu pai

- Que morte tão estúpida!

a levar com ele o professor de música. A morte do meu pai a salvar-me a vida. Cheguei mesmo a acreditar que morreu para me salvar. Amén. Pois porque outro motivo poderia o papá ter morrido, se ainda tão novo, de uma morte

- … tão estúpida!

a queda de uma árvore em cima do carro, onde ele a conversar com uma colega de trabalho.

- Não houve um homem na vida que não me tivesse desiludido!

a mamã antes e depois da notícia.

- Não houve um homem na vida que não me tivesse desiludido!

provavelmente desde o dia em que descobriu a diferença dos sexos.

- Não houve um homem na vida…

Mas a verdade foi que nunca mais tive de abrir uma tampa de caixão e isso só o posso agradecer ao meu pai, ou ao desmaio da árvore na recusa de ser piano.

No ano em que regressei de Angola, paixão, talvez, lindíssima, professora de música. Um dia

- Senta-te aqui.

e eu a tremer como um grande pianista a caminho de um piano de gelo.

- Senta-te aqui.

e as suas mãos a pegarem nas minhas e a colocarem-nas sobre o teclado, devagar, com os seus dedos a explicarem aos meus (com aquela boquinha que os dedos têm)

- É assim.

porque eu a assegurar-lhe que nunca havia sentido uma tecla na vida

- É assim.

eu a imitar-lhe os gestos; lentamente, como uma criança a andar sobre o branco e negro daquela calçada sonora.

- Isso! - um incentivo qual torrão de açúcar.

- Isso!

e de súbito, porque de súbito

- Muito bem

e eu a lançar-me ao seu pescoço frágil, quer dizer, não ao dela, ao do professor de música, apertando-o com toda a força que me faltara em criança, a bater-lhe com o crânio calvo no teclado aflito, enquanto

- Muito bem? Hum? Muito bem, meu cabrão de merda?!

e ele, não ela, ele, nem um pio, nem um ai, nem um nada, apenas acordes maiores atrás de acordes maiores.

Não a ela. A ela não. Um crânio calvo, não uma farta cabeleira ondulada até à cintura. Um crânio calvo. Juro que um crânio calvo.

- Trauma de guerra.

diria o psicólogo para a minha mãe

- Imagina que se abrir a tampa do piano

de caras com os companheiros mortos

o pai morto

as notas graves, rajadas de metralhadora

- … um processo moroso. Teremos de trabalhar o luto. Mas não se preocupe.

3 comments:

Anonymous said...

5*

Carlos Garcia said...

Muito, muito bom (como sempre)!!! Este template beje e que ja ia a vida nao?

Jurassik Pork said...

muito bom sim senhor, o Nor sabe.

@515 penso q não... o beje ajuda a trabalhar o luto :)