- Todos os acordes menores são tristes.
confessou-me o professor de piano, a meia voz, como se um grande segredo
- Todos os acordes menores são tristes.
um segredo igual àquele que lhe acompanhava a mão suada pela minha perna acima até ao interior dos calções, enquanto
- Muito bem! Muito bem!
apesar de eu tenso, encolhido
- Muito bem!
convencendo a minha mãe que eu haveria de ser um grande pianista. E eu a não distinguir as teclas brancas das pretas, porque
tenso, encolhido
apesar de
- Muito bem!
convencendo a minha mãe porque
- Muito bem!
e a minha mãe vaidosa, como se fosse ela própria a elogiada, na vaidade própria das mães, principalmente aquelas às quais nunca lhe foi sussurrado ao ouvido
- Muito bem! Muito bem!
e a minha mãe vaidosa, como se
ela própria dentro dos calções
- Muito bem!
No ano em que o meu pai morreu, eu dez anos, acabaram-se as aulas de dedilhado pelas pernas acima. Depois desse dia, não voltei a abrir a tampa de um piano
- É que ele associa o piano ao caixão do pai. Entende?
o psicólogo a explicar à minha mãe a minha súbita aversão ao instrumento de tortura em que se tinha tornado aquele armário de teclas.
- Imagina que se abrir a tampa do piano vai dar de caras com o pai morto.
e a boca da minha mãe, incrédula, ante a brilhante associação do doutor.
- … vai dar de caras com o pai morto.
- E o que há a fazer, doutor?
- Isso vai ser um processo moroso. Teremos de trabalhar o luto. Mas não se preocupe.
e a minha mãe a ficar descansada, porque o Doutor
- … não se preocupe.
a minha mãe não se preocupou e o dinheiro das aulas do professor transferiu-se para a conta do especialista em desmistificar pais mortos em forma de código de barras. Fato preto, gravata preta, camisa branca. Igual a Fá sustenido, Sol sustenido, Dó absoluto.
E, apesar de
- Faz…
(um piano,
o teu pai,
a Capela Sistina,
os planos do desembarque na Normandia,
num)
- … desenho à tua escolha.
a verdade é que, desde o dia em que o meu pai
- Que morte tão estúpida!
que não abria a tampa de um piano, e passava-lhes sempre ao lado, porque…
… uma mão suada pela minha perna acima até ao interior dos calções, uma mão cheia de dedos descarados a afirmarem, com aquela boquinha pequenina que os dedos têm
- Muito bem!
cinco vezes, um de cada vez
- Muito bem!
e outra mão cúmplice, porque silenciosa, na aba do piano, com aquela boquinha pequenina que os dedos têm, sem dizer nada, conivente com o
- Muito bem!
da outra
em vez de
- Dona Adília, venha cá depressa que o seu filho
ou
- … o professor do seu filho…
enquanto eu a não querer desiludir a minha mãe que
- Não houve um homem na vida que não me tivesse desiludido!
por isso eu
Dó menor, Ré menor, Mi menor
cada vez menor
dado que
- Todos os acordes menores são tristes.
e eu um acorde cada vez mais triste, cada vez menor, sem distinguir as teclas pretas das brancas embora
- Muito bem!
eu um piano desconjuntado, de pernas tensas, encolhidas, tocado pelos dedos ágeis daquela aranha gigante em forma de professor sussurrante
- Muito bem! Muito bem!
até ao dia em que o meu pai
- Que morte tão estúpida!
a levar com ele o professor de música. A morte do meu pai a salvar-me a vida. Cheguei mesmo a acreditar que morreu para me salvar. Amén. Pois porque outro motivo poderia o papá ter morrido, se ainda tão novo, de uma morte
- … tão estúpida!
a queda de uma árvore em cima do carro, onde ele a conversar com uma colega de trabalho.
- Não houve um homem na vida que não me tivesse desiludido!
a mamã antes e depois da notícia.
- Não houve um homem na vida que não me tivesse desiludido!
provavelmente desde o dia em que descobriu a diferença dos sexos.
- Não houve um homem na vida…
Mas a verdade foi que nunca mais tive de abrir uma tampa de caixão e isso só o posso agradecer ao meu pai, ou ao desmaio da árvore na recusa de ser piano.
No ano em que regressei de Angola, paixão, talvez, lindíssima, professora de música. Um dia
- Senta-te aqui.
e eu a tremer como um grande pianista a caminho de um piano de gelo.
- Senta-te aqui.
e as suas mãos a pegarem nas minhas e a colocarem-nas sobre o teclado, devagar, com os seus dedos a explicarem aos meus (com aquela boquinha que os dedos têm)
- É assim.
porque eu a assegurar-lhe que nunca havia sentido uma tecla na vida
- É assim.
eu a imitar-lhe os gestos; lentamente, como uma criança a andar sobre o branco e negro daquela calçada sonora.
- Isso! - um incentivo qual torrão de açúcar.
- Isso!
e de súbito, porque de súbito
- Muito bem
e eu a lançar-me ao seu pescoço frágil, quer dizer, não ao dela, ao do professor de música, apertando-o com toda a força que me faltara em criança, a bater-lhe com o crânio calvo no teclado aflito, enquanto
- Muito bem? Hum? Muito bem, meu cabrão de merda?!
e ele, não ela, ele, nem um pio, nem um ai, nem um nada, apenas acordes maiores atrás de acordes maiores.
Não a ela. A ela não. Um crânio calvo, não uma farta cabeleira ondulada até à cintura. Um crânio calvo. Juro que um crânio calvo.
- Trauma de guerra.
diria o psicólogo para a minha mãe
- Imagina que se abrir a tampa do piano
de caras com os companheiros mortos
o pai morto
as notas graves, rajadas de metralhadora
- … um processo moroso. Teremos de trabalhar o luto. Mas não se preocupe.
3 comments:
5*
Muito, muito bom (como sempre)!!! Este template beje e que ja ia a vida nao?
muito bom sim senhor, o Nor sabe.
@515 penso q não... o beje ajuda a trabalhar o luto :)
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