De repente, parece que acordei de um sonho e tinha vinte e três anos. O calor de Julho bateu-me nas ventas dormentes como uma lambada de Deus, à saída da faculdade, como que a dizer:
- Acorda!
Tinha acabado de defender o meu projecto de fim de curso e estava formado. Um senhor engenheiro! E agora? Senti tudo menos alívio. Sentia-me como se de repente uma desconhecida me abordasse na rua com uma barriga de sete meses a anunciar:
- Parabéns, vais ser pai!
Enquanto eu, de olhos abertos, a fazer força nas pálpebras para as descerrar. Porque não se pode acreditar de olhos fechados.
Parece que até já estava a ver o meu pai, pondo-me a mão vaidosa em cima do ombro
- Agora sim, vai começar uma vida nova! Eu com a tua idade…
e desfiar de um rosário ladainhado, ouvido vezes sem conta. Por minha conta, agora! Nessa noite mal dormi e tive sonhos recorrentes de angústia, como se estivesse sozinho no meio e uma medina árabe e não soubesse como de lá sair, nem como falar com os transeuntes que, como fantasmas, passavam por mim sem me ver, embora eu
- Desculpe, como é que eu saio daqui?
embora eu, não em árabe
- Tenho um exame importantíssimo e já estou atrasado!
embora eu, apenas a dormir.
Nunca nada na vida fiz sozinho. Nem a minha própria sexualidade me foi permitida descobrir por mim. O primeiro orgasmo na mão de uma prima mais velha, numas férias em Armação de Pêra; uma sensação de nascimento e morte ao mesmo tempo, e o constrangimento no rosto da minha mãe, na manhã seguinte, ao fitar-me os manchados calções do pijama.
Lembro-me do meu primeiro dia de aulas – dos meus pais agarrados às minhas mãos minúsculas, como se tivessem medo de se perder – e do sorrido batonado da minha mãe ao portão do liceu, no meu último dia de secundária.
- Queres que te deixe na faculdade? - no dia da matricula, o meu pai, numa tentativa desesperada de esticar um pouco mais a tripa umbilical.
Sempre presentes, sempre colados à biqueira dos meus sapatos, impedindo-me de cair e de andar.
Lembro-me da minha primeira borbulha de acne e das mil na manhã seguinte, numa odiosa colecção estampada na caderneta horrível da minha cara. Enquanto a minha mãe:
- É normal filho! - e eu a ver na cara dos meninos bonitos da escola que era tudo menos normal.
A primeira lâmina de barbear, oferecida pelo meu pai aos quinze anos, seguida do incontrolável discurso:
- Eu com a tua idade já tinha barba!
Com a minha idade ele já era o máximo! E a revolta dentro de mim a querer soltar-me a língua para lhe perguntar:
- Então e o que é que aconteceu para ficares assim?
E a não dizer nada, ainda que com vontade de
- Então e o que é que aconteceu…
E uma dualidade enorme debatendo-se dentro de mim. A raiva a puxar-me pela língua; o medo a pôr-lhe freio.
A minha mãe a explicar-me o ciclo menstrual, garantindo-me que:
- As mulheres apreciam um homem que compreenda o funcionamento da sua intimidade.
Ao passo que o meu pai:
- Da primeira vez custa-lhes um bocadinho, mas é mais fita que outra coisa!
O que me fez passar mais tempo a falar de trompas de Falópio e ovulação do que propriamente gozar a minha primeira vez, com uma rapariga que percebia mais de sexo que os meus dois pais juntos. Percebi-o quando um
- Não!
admirado, seguido de um admirado
- Porquê?
quando lhe perguntei
- Doeu-te?
Que vergonha!
A minha primeira bebedeira e eterna jura falsa de não repetir. O chegar a casa aos trambolhões com o universo às cambalhotas dentro do estômago e a desculpa enjoada na manhã seguinte de que devia ter comido algo estragado, com a minha mãe nos meus ouvidos de cristal:
- Ai coitadinho!
E o meu pai:
- São essas porcarias que vocês agora comem para aí!
porque o menino deles não bebia!
A minha primeira ganza, segunda, terceira e o cair para o lado a rir porque:
- Isto não bate nada!
A ida a inspecção militar e o medo de ter de rapar o cabelo; de botas no lugar dos meus sapatinhos de vela; do meu quarto transformado em caserna e a voz doce da minha mãe num despertar de cornetim:
- Mancebo Rodrigues!
em vez de
- João. Acorda filho!
E de repente, já engenheiro, sem noção de coisa nenhuma, sem vontade de coisíssima nenhuma, além de correr a esconder-me de novo no útero dormente da dona Júlia. Engenheiro de sonhos de papel. Engenheiro de vontades castradas, uma após outra, como cepas ao cair do Inverno. E eu a querer adormecer e acordar com cinco anos, num tempo em que ainda não engenheiro, ainda não calções manchados de vergonha, ainda não
- Não! Porquê?
ainda não
- Com a tua idade…
Eu a querer adormecer e acordar com cinco anos, após a sesta, para o lanche de bolachas com doce de morango, com a voz doce da minha mãe nos meus ouvidos pirralhos:
- João. Acorda filho!
1 comment:
Olha eu com a tua idade ja tinha pelo menos 3 romances, 2 novelas, 1 livro de cronicas e um contozinho erotico publicados ;) Ta cada vez melhor puto, o dia ha de chegar. (By the way, tens uns comentarios muita esotericos neste blog! Ainda dizem que aqui e que ha boa droga)
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