Desde que deitaram abaixo o Monumental que nunca mais foste o mesmo. Estávamos casados havia dois anos e o amor prometia planícies de lírios em flor. Eu sei que tu não gostas de falar sobre este assunto, mas eu não consigo guardar tudo para mim e não tenho amigas, como tu sabes. O que tu ganhavas chegava
- …para os dois…
insistias
- … e assim o pequeno…
Paulo Filipe
(não me lembro de alguma vez lhe ter ouvido o nome na tua boca)
- … o pequeno…
passava mais tempo comigo, que
- O mal da Revolução foi esse!
dizias e eu acreditava
- Desintegrar as famílias.
E como em casa não se fazem amigas, e num prédio de doze apartamentos não se conhece ninguém
bom dia, boa tarde
que à noite já é para se ter a porta trancada, que
- O mal da Revolução foi esse!
não tenho amiga alguma.
A dona Odete? Não! Conhecida apenas.
bom dia, boa tarde
que à noite
vai dormir ao lar
- O mal da Revolução foi esse!
Por isso, Zé, tem lá paciência, mas preciso de falar com alguém. Não é ser chata, Zé, é ser tua mulher, é estar à toa! É não saber o que se passa e tu não falares comigo. Quase não olhas para mim e nunca te deitas à mesma hora que eu. Ah que Deus que tu trabalhas e sustentas a casa. Caramba, Zé! Então e o meu trabalho não custa nada? Quanto pensas que leva uma empregada hoje em dia?
Parece que é só o cheque que distingue o trabalho da obrigação. Mas se eu não tenho cheque é porque o que tu ganhavas chegava
- …para os dois…
Mas já éramos três, Zé! Já éramos três.
- … o pequeno…
Sim, o pequeno, Zé
Paulo Filipe.
E é só por isso que não ponho um cheque ao lado do teu. Como os bilhetes, alianças de papel, sobre o balcão do Monumental, quando tu, mais tempo a olhar para mim que para a tela, a suar-me a mão nas matinés de domingo, e ao meu ouvido
- És tão bonita, Rosa!
Ai, meu Deus! Nem imaginas as saudades, Zé! Uma mulher nunca se esquece destas coisas.
Sempre ali, aos domingos. E depois do filme, avenida abaixo, mão dada, desde que chegavas até me deixares à porta dos meus pais
Rua do Salitre, 31
de mão dorida
tão feliz
porque tu no meu ouvido
- És tão bonita, Rosa!
Tão feliz
até à hora de dormir, contigo ali, apertadinho nos dedos. Ai, Zé! Uma mulher nunca se esquece destas coisas.
Uma cerimónia simples. Estavas tão nervoso… tão bonito, Zé. A igreja dos Anjos…
e o amor prometia planícies de lírios em flor
De lírios em flor, Zé!
Delírios em flor…
Dois anos de felicidade. Três de namoro. Até que
vai a baixo o Monumental
e tu
alguma coisa em ti
a ir abaixo também.
Insistias não ser nada: o trabalho, a reprografia, o cansaço, as responsabilidades
altas horas
e eu
sozinha
com o Paulo Filipe
(Sim, o pequeno, Zé!)
até tu
altas horas
pé ante pé para debaixo do lençol
e eu
sem pregar olho
a fingir que dormia, a sentir-te torturado, com vontade de me agarrar a ti, entrançar os meus dedos nos teus, e ficar ali
como antigamente
apenas ficar
ali
como antigamente
na almofada morna do teu ombro… mas
a não mexer um músculo
a fingir
a sentir-te torturado
a torturar-me
porque tu nunca gostaste de falar sobre este assunto.
Eu entendo, meu querido! Também amava o Monumental
o nosso refúgio
(três anos de namoro)
Por ti tínhamos casado lá. Mais sagrado que a igreja do Anjos. Mas a família, as tradições…
Bem dizes não ser nada disso. Disfarças. Mas eu conheço-te, Zé. São muitos anos. Tenho ouvido psicólogos na televisão a falarem dessas coisas
traumas.
Há mais gente que ficou assim. Olha a Laura Alves, coitadinha! Dizem que tudo se resolve. Mas fala comigo, Zé. Por favor fala comigo. Senão começo a criar macaquinhos no sótão
como tu dizes.
O que é que te custa descansar-me, Zé?
O metro, a hora de ponta, toda a gente ao monte, homens e mulheres
(é normal que cabelos louros na lapela, um perfume estranho)
eu sei.
Mas o que é que te custa dizer-me
metro
hora de ponta
gente ao monte
homens e mulheres
amante nenhuma…
O que é que te custa, Zé
por causa do Monumental
que me amas
que
- És tão bonita, Rosa!
o que é que te custa, Zé? O que é que te custa?
Friday, August 29, 2008
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1 comment:
Norberto Morais
queria dar-lhe os parabéns pela fantástica capacidade de escrita. É difícil qualificar livros, mas acredito que não hajam muitos livros como os seus "Vícios de Amor". Um livro, definitivamente, soberbo. Sei do que falo.
Li apenas duas crónicas (haverei de ler todas)e, apesar de terem um estilo inteiramente diferente, são igualmente arrasadoras. O que só prova a qualidade do autor. Pela fotografia do livro vê-se que ainda é jovem, o que me faz acreditar que estou na "presença" de um dos maiores vultos da literatura nacional (e internacional) dos próximos anos.
Força! E uma vez mais, Parabéns.
João Seabra
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