Saímos para almoçar juntos
hoje
Domingo
porque no dizer da Sandra
- Há tanto tempo que não tiramos um dia para nós!
Há alguns anos, talvez…
casados há treze
faz hoje
Domingo
e por isso
mais do que
- Há tanto tempo que não tiramos um dia para nós!
saímos para almoçar juntos.
A Sandra dá importância a datas. E apesar do nosso casamento uma “miséria conjugal”, ainda a dar trabalho, como um doente acamado que nem se levanta nem morre, não há coragem nem permissão para desligar a máquina.
Descemos a Alameda, passámos pelos velhos da sueca, que almoçam cedo e já lá estavam, como pombos ao sol, ainda pouco passava da uma. Um pai a passear uma pequenita, tagarela, com o ar enfadado dos pais de fim-de-semana, contrafeito por não poder estar com a namorada nova, que se calhar não assim tão nova, mas que para aturar os filhos dos outros
- “Não, muito obrigada!”
e por isso, em casa a
- Acabar umas coisas que tenho para fazer.
de modo que, depois do almoço, lá terá de suportar a pequena, tagarela, que lhe faz lembrar a ex em cada gesto, e que pelos vistos
- Gosta imenso de ti!
nas palavras dele.
Almirante Reis abaixo
(a mais feia avenida da cidade)
rumo à Portugália
(o mais deprimente restaurante da cidade)
que eu encaro como uma puta velha; distinta em seus tempos de juventude, e que por um não sei que raio continua a ser frequentada por quem só a conheceu já velha e decadente.
Sentámo-nos um de frente ao outro, e o pouco que eu tinha para dizer disse-o
- Nunca percebi o fenómeno deste restaurante!
e calei-me.
A Sandra sorriu, e não sendo assunto que tivesse relevo prolongar, pegou na ementa, declarando, antes mesmo de a abrir
- Vou querer um bife à Portugália. Há muito tempo não como e já estou com saudades.
abrindo, porém, a ementa, como uma revista, só para ver se alguma novidade. Sabia o que queria, mas não resistia à tentação de encontrar algo melhor, ou apenas curiosidade de mulher. Como na loja, onde entra com os trocos contados para umas calças, mas dá a volta a tudo, experimentando coisas que jamais poderá comprar.
Comemos calados, um bife de…
merda, era aquilo que me apetecia dizer
calados diante um do outro. Afinal, coisas como
- Então, está bom?
e
- Queres mais uma?
referindo cerveja com um apontar de olhos para o copo vazio
não se pode considerar conversa.
Ao fim da segunda imperial a Sandra começou a soltar-se. Eu ainda precisava de um pouco mais. Tenho bebido imenso
para esquecer, diria o povo
ou os malucos
do riso
(que no fundo é uma e a mesma coisa).
Tenho bebido imenso, dizia
embora o efeito desejado nunca seja duradouro
por isso
- É mais uma, se faz favor.
ao todo cinco, mais o uísque com o café, a ver se algum assunto de conversa, que até ali, apenas a Sandra, a revolver o baú bafiento da nossa história em comum com
- Lembras-te daquela vez em que…
e eu que me não queria lembrar de nada além do caminho do trabalho para casa, a ter de me lembrar do primeiro beijo, em casa dos pais dela, onde eu
- Estavas tão nervoso…
devia ter aproveitado
- …que até te querias ir embora antes de o meu pai chegar!
para dar à sola enquanto era tempo, mas
a Sandra a garantir que a irmã também iria jantar
- Parece que terminou com o namorado e vai voltar para casa.
fiquei
à espera
na esperança
até hoje
que a Bruna
a viver em Inglaterra há doze anos
viesse jantar connosco e olhasse para mim.
- Há treze anos, Martim! Como o tempo passa a correr!
e eu a fazer um gesto ao empregado
mais um uísque, que a conversa ia ser longa e indigesta, pois o tempo não passa à mesma velocidade para todos
(deve ser isto que a relatividade explica)
enquanto a Sandra a desencantar retratos baços, roupas traçadas, objectos deformados
- Lembras-te…?
- Lembras-te…?
- Lembras-te…?
E eu a lutar contra a memória; eu a não querer lembrar-me de nada além do caminho do trabalho para casa
mas a Sandra
como uma inquisidora
um Torquemada do Santo Ofício
- Lembras-te…?
a obrigar-me, sob tortura, a confessar
- Lembras-te…?
até eu jurar que sim
que
- Lembro…
claro que
- … lembro, amor!
eu que
um gesto ao empregado
mais um uísque
a beber para esquecer, como diriam os malucos do povo
ou do riso
uma e a mesma coisa.
Mais um uísque
um Moscatel para a Sandra
porque nesse dia ia haver...
Enfim, não será preciso dizer!
Festa é festa e um dia não são dias, e trezes anos
Diabo os levem
são treze anos. Especialmente para quem não é de superstições.
Subimos a Alameda
mãos dadas
cheia de velhos e suecas
mais velhos que suecas
que para quatro velhos uma sueca chega e sobra.
O pai e a menina já lá não estavam. A almoçar…
é capaz que a almoçar, já, em casa da namorada nova
se calhar não assim tão nova
a qual, calhando, já acabou
- … umas coisas que tenho para fazer.
de modo que, depois do almoço, lá terá de suportar a pequena, tagarela, que lhe faz lembrar a ex em cada gesto, e que pelos vistos
- Gosta imenso de ti!
nas palavras dele.
O parque infantil cheio de crianças felizes, enquanto os pais, do lado de fora, se fingem radiantes, porque o melhor do mundo, como disse o poeta, são as crianças. Que ao poeta era fácil dizê-lo, pois quem nunca teve filhos pode escrever os poemas como bem lhe der na gana.
Subimos a Alameda
mãos dadas
e descemos à cave direita, onde
- Ah, que saudades, Martim!
houve o que tinha de haver
(enfim…)
porque festa é festa e um dia não são dias, e trezes anos
Diabo os levem
são treze anos.
1 comment:
"para quatro velhos uma sueca chega e sobra"
LOL
Vou imprimir isso numa shirt
para quando subir a alameda
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