A minha primeira condicional em oito anos de cárcere. Vim visitar a família. A minha madrinha Almerinda, que me criou desde os dois anos, quando os meus pais
enfim, não importa.
- Júlio! - contentíssima por me ver. Ainda que eu
Jorge
Jorge da Silva Bastos
e não o filho que lhe morreu há mais de vinte anos a cento e cinquenta à hora, na Recta do Cabo
porque de noite, e um eucalipto ensonado a não se desviar a tempo.
- Júlio! - contentíssima por me ver, ou ao filho
que importa isso
contentíssima
isso sim
que venham os abraços e os beijos, que
oito anos de cárcere
ensinam-nos a não ser esquisitos. Agora, Jorge; Júlio, pouco importa. Beijos são beijos e abraços são abraços e o resto é conversa. No fim de contas não via o filho há mais anos do que a mim e
daqui a uma dúzia
se ainda for viva, pode ser que quando eu lhe tocar à campainha, me abra os braços e
- Jorge! - contentíssima por me ver.
À tarde
porque o sono lhe era pesado nos olhos
e eu mais só que na cela de Pinheiro da Cruz
fui até ao jardim da vila, à beira do Tejo, onde um enfileirado de gaiolas exibia aves vulgares como se de uma raridade se tratassem.
“Não alimente as aves”
numa pequena placa
com a explicação da veterinária
“Pelo bem-estar destas aves, agradecemos que não as alimente. Ajude-nos a mantê-las de boa saúde”
pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira.
Era domingo e o jardim estava cheio de famílias vulgares, como as aves, em exposição, às quais, creio, também não se podia atirar pão, sob o risco de uma reprimenda por parte da senhora doutora veterinária.
Na primeira gaiola um pavão, infeliz, derreado pelo peso da vaidade, das penas inúteis do rabo - pois que nenhuma fêmea para justificá-las. Uma cruz em forma de leque colorido. E ainda há quem diga que as penas não pesam nada! Ele há penas e penas. Eu que o diga
um azar na vida e
enfim, não importa.
Quantas vezes terá este companheiro de desgraça aberto o leque?
Não que lho não peçam os vulgares domingueiros, que não tendo penas que se vejam se aprontam a exibir-se com as penas alheias, quando muito orgulhosos respondem
- É um pavão!
à pergunta do filho
nove, dez anos
que merecia era um tabefe no focinho por fazer uma pergunta tão estúpida.
E o bicho, ali exposto, de beleza murcha, sem onde se esconder e à humilhação. Pois, apesar de tudo
- É um pavão!
e um pavão tem papel enorme a cumprir nesta capoeira de vaidades.
E o pai vulgar, na estupidez vulgar das pessoas vulgares, a dar-se a mais um golpe de penas
- Abre o leque, pá!
e o pavão, que com certeza percebe aquilo que o homem lhe gritou
pois todos os bichos menores falam a mesma língua
a encolher as asas e a deixar-se ficar, de mãozinhas atrás das costas, como um reformado derreado e triste.
- Ó maricas! Abre o leque, pá!
e a criancinha vulgar, que merecia era um tabefe por fazer uma pergunta
tão estúpida
- Que é isto, pai?
Isto?
Isto?
E depois de um tabefe no focinho
- Isto é um pavão, meu estúpido de merda!
Mas não! Que nas crianças não se bate, por mais estúpidas que sejam
por isso
- É um pavão!
todo inchado, por poder mostrar ao filho que só não é engenheiro ou doutor porque a professora da primária embirrava com ele.
- É um pavão!
todo pavão
quando se não fosse vulgar
- Isto é um pavão, meu estúpido de merda!
que é isso que é uma criança que aos
nove, dez anos
não sabe reconhecer um pavo cristatus.
De modo que o petiz
- É um pavão!
num repetir de papagaio, que estava bem era dentro de uma gaiola de dois por três
como eu amanhã ao fim do dia
(e por mais três aninhos, que é o que me falta para estar
reabilitado)
dentro de uma gaiola
dois por três
onde uma placa
“Não alimente as aves”
com a adenda da veterinária
“Especialmente as estúpidas como este papagaio”
que
- Ó maricas! Abre o leque, pá!
sob o olhar rendido da mãe, numa gargalhada miserável de dentes, revelando a vaidade de ter um filho tão estúpido quanto o marido que arranjou.
- Ó maricas! Abre o leque, pá!
A repetir diante da gaiola dos periquitos, porque para quem é geneticamente estúpido, tudo o que tem penas é maricas. E lá porque eu
em Pinheiro da Cruz
não quer dizer que...
Eu que mas jamais perguntaria diante de um pavo cristatus
- Que é isto, pai?
até porque, pai nenhum
a minha madrinha Almerinda
desde os dois anos, quando os meus pais
enfim, não importa.
Um azar na vida.
Acontece.
Mas é só mais três aninhos, que depois
reabilitado
que a cadeia também tem as suas coisas boas. E um homem habitua-se a tudo, e faz a sua casa onde em casa se sente. De modo que, até nem é assim tão mau quando comparado com o que vejo cá fora, onde não tenho nada
a minha madrinha Almerinda
com o sono a pesar-lhe nos olhos
a dar-me vontade de passar o resto da vida lá dento, onde a idade é um posto, como na armada.
Mas daqui a três aninhos
uma pena maior
(apesar de
reabilitado)
cá fora, onde não tenho nada
pois cá fora não é para todos
que o diga o pavão atormentado
de modo que
a reabilitação talvez se prolongue
uma questão de apertar o fôlego uma família de domingueiros que eu cá sei, ou enformar um pão inteiro no gorgomilo de uma certa doutora, para quem alimentar as aves é mau e tê-las dentro de uma gaiola
(dois por três
como eu amanhã ao fim do dia)
é fazer-lhes bem à saúde.
No comments:
Post a Comment