Monday, November 26, 2007

Z

A minha primeira espada, podem não acreditar, mas foi o Zorro quem ma deu. Tinha seis anos e acabado de vê-lo na televisão. A minha avó chamava-lhe Tyrone Power, e o meu avô dizia ser um dos seus actores preferidos. Mas eu

nenhum actor

sabia bem que

o Zorro

pois era tão real como qualquer um deles, embora a preto e branco. Tanto que, ao fim da tarde, me apareceu no quintal com dois floretes de madeira na mão.

Estava-lhe já quase a apanhar o jeito quando a voz da minha avó nos surpreendeu a combater espanhóis em forma de laranjeiras.

- Que raio de palermice vem a ser esta?!

e as suas mãos a porem em risco o povo do México quando pegaram no meu florete e o partiram em dois, impossibilitando-me de fazer justiça.

- E já à minha frente para casa.

a sentarem-me à mesa da cozinha com um caderno e o livro de português à frente dos olhos furiosos.

- O Zorro vai-me dar outra espada!

- O que é que disseste?

- Nada.

- O que é que disseste?

- O Zorro vai-me dar outra espada. - respondi a contra gosto, porque à terceira já não haveria pergunta.

- Pões-te com palermices e acaba-se a televisão que é um instante!

E eu a desenhar espadas e máscaras em vez de letras e palavras, orgulhoso do meu silêncio, pois se a avó o tivesse apanhado

“ai menino!”

estaria ali comigo, de língua à banda, a copiar hieróglifos. Esperei por ele até tarde, esgrimindo contra o sono, mas acabei derrotado até à manhã do dia seguinte: segunda-feira e dia de escola.

À tarde, quando regressei da mina

onde em vez de uma picareta um lápis, e em vez de uma vagoneta uma folha em branco para encher de carvão até ao toque da sineta

procurei entre a roupa velha da bisavó, tecido preto, e fiz uma mascara e uma espada muito parecida com a primeira e sai para o quintal à procura de mexicanos em apuros.

Ainda não estava bem preparado para ser um Zorro. Tinha de aprender a esconder-me, bem como à espada, à máscara e ao cavalo: o mais difícil de ocultar. Por isso criei um invisível, com o qual cavalgava de um lado para o outro, com ferraduras de veludo, ante o olhar desconfiado da minha avó.

Quando os adultos me começaram a perguntar como nascem os bebés

ou o que queria eu ser quando fosse grande

(que é a mesma coisa, quando perguntado por adultos)

respondia sem hesitar

- Quero ser o Zorro.

E quando depois de uma gargalhada parva

e um

- Essa é muito boa!

voltavam à carga

- E que profissão é que queres ter?

encolhia os ombros, e não sabia o que responder. Nunca entendi o porquê das perguntas estapafúrdias dos mais velhos! Por isso, e porque devia ter pena da sua falta de alcance, lá acabava por dizer

- Médico.

com a mesma convicção que diria tanoeiro se à época já conhecesse profissão.

- Médico? Muito bem!

e uma mão orgulhosa a passar-me pelo cabelo liso, numa lambidela de camelo, como que me autorizando a ir brincar em recompensa pela resposta certa.

Médico. Porque não, para disfarçar?! Era outra forma nobre se ajudar a humanidade. E, bem vistas as coisas, não há assim grande diferença entre uma seringa e um florete, doutor Diego de La Vega!

O tempo foi-se passando e, sempre que alguma laranjeira ameaçava uma couve-galega ou um canteiro de feijões amedrontados, lá saía eu a galope, quintal afora, de florete em punho para os defender

até a minha avó, com cara se Sargento Gonzales (Garcia como ficaria conhecido), me indicar a mesa da cozinha e confrontar-me com dureza

- Os trabalhos de casa faço-os eu, não é?!

E eu a puxar do lápis e da borracha

mais borracha que lápis

e a dar início aos trabalhos

de casa

como um presidiário, condenado ao serviço social, a caiar a igreja de lápis na mão, nervoso

o lápis

sem saber por onde começar, como ainda hoje me acontece sempre que me sento para escrever alguma coisa

como no tempo em que as letras apenas saíam se a língua de fora, num esforço de lesma arrastando-se sobre os lábios

porque o lápis um peso incompreensível, muito mais que a espada

uma picareta disfarçada, e a folha, a vagoneta que

- Não sais daí enquanto isso não estiver tudo feito.

era preciso atulhar de carvão em forma de letras.

E a língua de fora

num esforço de lesma

sobre os lábios

e apenas uma letra na perfeição

záz

duma assentada

nenhum esforço; língua nenhuma

a última do alfabeto. Uma letra que mais ninguém sabia na escola porque ainda só no T

de trabalhos de casa

trabalhos forçados

Todos no T

só eu a conhecer a última letra do alfabeto, a mais importante

a que punha fim a todas as injustiças, menos a de

- Não sais daí enquanto isso não estiver tudo feito.

enquanto isso

os espanhóis malvados a abusarem dos pobres mexicanos.

E, porque nunca mais

- …tudo feito.

ainda hoje, aqui sentado, de língua de fora

num esforço de lesma…sobre os lábios

enchendo vagonetas de papel com lasquinhas de carvão, enquanto o povo da Califórnia, para sempre perdido

vivendo de verdades fictícias

inventando Tyrones Power

para fazerem crer que injustiça alguma; que tudo bem; amigos todos; um faz de conta, apenas

porque por mais que digam que o lápis uma arma poderosa, eu a não conseguir manejá-lo tão bem quanto à espada.

1 comment:

Anonymous said...

Brutal... Adorei.