A minha primeira espada, podem não acreditar, mas foi o Zorro quem ma deu. Tinha seis anos e acabado de vê-lo na televisão. A minha avó chamava-lhe Tyrone Power, e o meu avô dizia ser um dos seus actores preferidos. Mas eu
nenhum actor
sabia bem que
o Zorro
pois era tão real como qualquer um deles, embora a preto e branco. Tanto que, ao fim da tarde, me apareceu no quintal com dois floretes de madeira na mão.
Estava-lhe já quase a apanhar o jeito quando a voz da minha avó nos surpreendeu a combater espanhóis em forma de laranjeiras.
- Que raio de palermice vem a ser esta?!
e as suas mãos a porem em risco o povo do México quando pegaram no meu florete e o partiram em dois, impossibilitando-me de fazer justiça.
- E já à minha frente para casa.
a sentarem-me à mesa da cozinha com um caderno e o livro de português à frente dos olhos furiosos.
- O Zorro vai-me dar outra espada!
- O que é que disseste?
- Nada.
- O que é que disseste?
- O Zorro vai-me dar outra espada. - respondi a contra gosto, porque à terceira já não haveria pergunta.
- Pões-te com palermices e acaba-se a televisão que é um instante!
E eu a desenhar espadas e máscaras em vez de letras e palavras, orgulhoso do meu silêncio, pois se a avó o tivesse apanhado
“ai menino!”
estaria ali comigo, de língua à banda, a copiar hieróglifos. Esperei por ele até tarde, esgrimindo contra o sono, mas acabei derrotado até à manhã do dia seguinte: segunda-feira e dia de escola.
À tarde, quando regressei da mina
onde em vez de uma picareta um lápis, e em vez de uma vagoneta uma folha em branco para encher de carvão até ao toque da sineta
procurei entre a roupa velha da bisavó, tecido preto, e fiz uma mascara e uma espada muito parecida com a primeira e sai para o quintal à procura de mexicanos em apuros.
Ainda não estava bem preparado para ser um Zorro. Tinha de aprender a esconder-me, bem como à espada, à máscara e ao cavalo: o mais difícil de ocultar. Por isso criei um invisível, com o qual cavalgava de um lado para o outro, com ferraduras de veludo, ante o olhar desconfiado da minha avó.
Quando os adultos me começaram a perguntar como nascem os bebés
ou o que queria eu ser quando fosse grande
(que é a mesma coisa, quando perguntado por adultos)
respondia sem hesitar
- Quero ser o Zorro.
E quando depois de uma gargalhada parva
e um
- Essa é muito boa!
voltavam à carga
- E que profissão é que queres ter?
encolhia os ombros, e não sabia o que responder. Nunca entendi o porquê das perguntas estapafúrdias dos mais velhos! Por isso, e porque devia ter pena da sua falta de alcance, lá acabava por dizer
- Médico.
com a mesma convicção que diria tanoeiro se à época já conhecesse profissão.
- Médico? Muito bem!
e uma mão orgulhosa a passar-me pelo cabelo liso, numa lambidela de camelo, como que me autorizando a ir brincar em recompensa pela resposta certa.
Médico. Porque não, para disfarçar?! Era outra forma nobre se ajudar a humanidade. E, bem vistas as coisas, não há assim grande diferença entre uma seringa e um florete, doutor Diego de La Vega!
O tempo foi-se passando e, sempre que alguma laranjeira ameaçava uma couve-galega ou um canteiro de feijões amedrontados, lá saía eu a galope, quintal afora, de florete em punho para os defender
até a minha avó, com cara se Sargento Gonzales (Garcia como ficaria conhecido), me indicar a mesa da cozinha e confrontar-me com dureza
- Os trabalhos de casa faço-os eu, não é?!
E eu a puxar do lápis e da borracha
mais borracha que lápis
e a dar início aos trabalhos
de casa
como um presidiário, condenado ao serviço social, a caiar a igreja de lápis na mão, nervoso
o lápis
sem saber por onde começar, como ainda hoje me acontece sempre que me sento para escrever alguma coisa
como no tempo em que as letras apenas saíam se a língua de fora, num esforço de lesma arrastando-se sobre os lábios
porque o lápis um peso incompreensível, muito mais que a espada
uma picareta disfarçada, e a folha, a vagoneta que
- Não sais daí enquanto isso não estiver tudo feito.
era preciso atulhar de carvão em forma de letras.
E a língua de fora
num esforço de lesma
sobre os lábios
e apenas uma letra na perfeição
záz
duma assentada
nenhum esforço; língua nenhuma
a última do alfabeto. Uma letra que mais ninguém sabia na escola porque ainda só no T
de trabalhos de casa
trabalhos forçados
Todos no T
só eu a conhecer a última letra do alfabeto, a mais importante
a que punha fim a todas as injustiças, menos a de
- Não sais daí enquanto isso não estiver tudo feito.
enquanto isso
os espanhóis malvados a abusarem dos pobres mexicanos.
E, porque nunca mais
- …tudo feito.
ainda hoje, aqui sentado, de língua de fora
num esforço de lesma…sobre os lábios
enchendo vagonetas de papel com lasquinhas de carvão, enquanto o povo da Califórnia, para sempre perdido
vivendo de verdades fictícias
inventando Tyrones Power
para fazerem crer que injustiça alguma; que tudo bem; amigos todos; um faz de conta, apenas
porque por mais que digam que o lápis uma arma poderosa, eu a não conseguir manejá-lo tão bem quanto à espada.
1 comment:
Brutal... Adorei.
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