Sunday, November 25, 2007

É canja!

A partir de certa altura os mosquitos já faziam parte dos nossos corpos como as pulgas de um cão. Já não os enxotávamos. Como ao medo da morte. A não ser que picassem mais fundo. Também eles tinham esse cuidado. Naquela terra havia sangue para todos, era só uma questão de ter paciência. Não era só o sangue que os mosquitos nos chupavam. As lágrimas também. Pois

quase dois anos após ter desembarcado no estuário do Geba

as lágrimas deixaram de me aflorar à vista. Talvez que a demasia do calor as evaporasse mal começassem a pontear-me os olhos.

Eu nunca tinha visto um preto. Nem ao vivo nem morto. E não sei se alguma vez me tinha passado pela cabeça haverem homens tão diferentes de mim

tão iguais a mim

apesar de tão diferentes

de mim.

Nunca tinha posto os olhos numa televisão, e só conhecia o Eusébio da telefonia, onde os homens são todos da mesma cor.

Os dias, quentes e peganhentos, como beijos de tias solteironas, acordavam-nos com uma camada de melaço sobre a pele. Por isso os mosquitos

antes a nós

numa preferência natural

do que aos pretos

do que aos outros bichos-do-mato, que mais fome que sangue, e aos quais já lhes sabiam o sabor. Além de que sangue de branco é mais docinho, que os pretos só vêem açúcar quando o rei faz anos…

…de morto

como quase tudo por ali

de medo

de cansaço

de fome

de sede

de frio

de calor

de morte mesmo.

Se bem que não eram as balas o que mais matava quem

como eu

quase dois anos após de ter desembarcado no estuário do Geba

ainda por ali andava

a arrastar a vida que

por vontade dela

há muito se tinha sentado de braços cruzados a chorar a desgraça.

Tinham-me preparado para matar, mas nunca me tinha dito que era para matar a sério. Pelo menos nunca o tinha percebido, ou querido perceber. E ninguém está verdadeiramente preparado para matar até matar pelo menos dez homens iguais a si

ou

tão diferentes…

- O que custa são os dez primeiros, depois é canja.

o sargento Dias a garantir-nos que

- … depois é canja.

E eu que sempre detestei canja

só o cheiro a trazer-me o estômago à boca

a não ficar mais descansado, como seria suposto; pois mal matasse dez

o estômago à boca.

E assim foi!

Ninguém se habitua a matar, não me venham com histórias. Tal como ninguém se habitua a gostar de miudezas a boiar num prato de arroz com água e gordura, por mais que

- Tens de habituar! Se os outros comem…

- Se os outros conseguem…

Se os outros, se os outros, se o sou… truz!

O primeiro tiro. E o primeiro tiro é para matar o medo

TRUZ

Mas o medo não morre a tiro. Nem de bazuca. Morre de susto.

Até que o primeiro corpo a cair ao engatilhar da G3, que

- O que custa são os dez primeiros…

um segundo, um terceiro

- … depois é canja.

e eu a morrer também

porque em cada tiro um pouco de mim a ficar por terra

pois quem mata também morre e ninguém se habitua a matar, não me venham com histórias. Da mesma forma que ninguém se habitua a morrer por mais vezes que morra. Digo-o eu que morri muitas:

Almeida; Simões; Antunes; Cabaço; Mascarenhas; Gomes; Pires; Lima; Pereira de Sousa; Borges…

por mais que me digam que

se os outros, se os outros, se o sou… truz!

Um quarto, um quinto

e passaram-se os dez, os vinte, sem que eu desse por isso;

sem que eu me habituasse às miudezas a boiar num prato de arroz com água e gordura

Quem terá sido o décimo? Quem terá sido o cabrão que me ficou com a coragem?

QUEM? QUEM? QUEM?

como

TRUZ, TRUZ, TRUZ…

Até que a luz se me apagou diante dos olhos e o medo se tornou num monstro visível. A descobrir, aos saltos na Unimog, a caminho do aquartelamento improvisado no meio de tabancas abandonadas, que a morte afinal não custa. Mas custa a sede que me entaramelava a boca e que apenas um punhado de lama conseguia disfarçar. Apesar dos avisos para não bebermos

- … essa merda!

Era morrer de cólera ou de sede. O que chegasse primeiro

antes do o Alferes Botelho

- Almeida; Simões; Antunes; Cabaço; Mascarenhas; Gomes; Pires; Lima; Pereira de Sousa; Borges…

a não responderem ao chamado do saco dos aerogramas… nenhuma notícia os moveria do outro mundo

caladinhos que nem uns ratos…

(Ai não! Eu faria o mesmo.)

… não fosse uma convocatória de urgência para voltar ao mato, para voltar à estucha do calor, da humidade, dos mosquitos, das rajadas, do sangue, da lama, da

- …merda!

do mijo pelas pernas a baixo

que um homem só é homem quando não tem fome, nem sede, nem sono, nem medo, nem dores, nem sangue no canto dos olhos; na ponta dos dedos…

por isso

que nem uns ratos

caladinhos

quando o Alferes Botelho

- Almeida; Simões; Antunes; Cabaço; Mascarenhas; Gomes; Pires; Lima; Pereira de Sousa; Borges…

Eu faria o mesmo.

A descobrir, aos saltos na Unimog… que a morte afinal não custa. Embora nada me enchesse de coragem, nem o fumo dos cigarros que aspirava até ao mais profundo de mim. Como que para me sentir por dentro. Como que para me garantir que ainda vivo depois de ter morrido tanta vez

Almeida; Simões; Antunes; Cabaço; Mascarenhas; Gomes; Pires; Lima; Pereira de Sousa; Borges…

Por mais que me digam que

Se os outros, se os outros, se o sou… truz

Ninguém se habitua a miudezas a boiar num prato de arroz com água e gordura, não me venham cá com histórias!

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