Nus…
sobre a cama alugada, no silêncio que sobra das bocas amassadas pela vontade de que o tempo pare para sempre
ali
pendurado nos estores enviusados daquela janela empenada com vista para as traseiras da pensão, onde ervas e gatos se confundem com restos de luz ao amornar do dia.
Nus…
sobre a cama alugada, no silêncio que sobra do depois, quando a tarde é já quase nada e uma promessa de noite ainda.
Ali
diante da tela em branco do acaso, num esboço de olhos, cuja imaginação não chega para encher de verdade.
Estavas sozinha na esplanada dum café em Montmartre, a rabiscar a vida num Moleskine, quando eu me sentei a uma mesa a suspirar solidão. Vimo-nos pelos cantos dos olhos e trocámos olhares
enviusados
como os estores daquela janela empenada com vista para as traseiras da pensão, onde ervas e gatos…
Eu a procurar-te
ou qualquer coisa em ti
e tu…
as linhas do meu rosto, a verdade dos meus olhos, deixados em branco, na folha que ficou sobre a minha mesa ao saíres rua abaixo.
Eu atrás de ti
num francês horrível, mas que tu entendeste na perfeição, porque o silêncio é igual em todos os cantos do mundo. E disseste que
- Pas du problème!
e que as palavras faziam demasiado barulho.
Estudavas pintura e vivias num quarto de pensão a um quarteirão dali. Seguimos descendo a Chevalier de la Barre, e tu francesando-me o teu mundo e as diferentes cores que o compunham.
Convidaste-me a subir
ao segundo andar
ao o teu quarto
e perguntaste-me se gostaria de pousar para ti…
nu…
sobre a cama alugada.
E eu
no silêncio que sobra da sem coragem de negar, a assentir com a cabeça
e
apesar de não muito à-vontade
a desfazer-me da roupa e a deitar-me sobre a cama, sob a janela aberta para o fim da tarde. E porque eu
não muito à-vontade
tu a tirares o vestido, as sandálias e a ficares nua à minha frente, diante do cavalete lambido pelo arco-íris dos teus pincéis. Achei-te justa! Possuías toda a verdade nos olhos e eras nua por natureza. Tinhas movimentos largos, delicados, de bailarina russa, e cada pincelada na tela era uma lambidela no meu corpo crescente de desejo por ti. Concentrada, desconcentravas-me em cada deslizar de pincel, em cada movimento de mal me quer; bem me quer…
e
num sorriso capaz de matar o mais insensível dos homens, pediste-me
- Vérité!
pois querias pintar-me os olhos e, sem verdade, não serias capaz. Queria-los nus, mais do que a mim, e explicaste-me ser por isso tão difícil pintá-los e não apenas por serem olhos
e num sorriso
capaz de matar o mais insensível dos homens
repetiste
- Vérité!
e que não fugisse de ti, que não me escondesse atrás das pupilas, que me mantivesse
- …présent.
- …proche.
mais perto, mais perto…
e pousando a paleta, aproximaste-te de mim, colocaste-me a mão sobre o teu seio, apertando-a ligeiramente, inspirando fundo, e sorriste-me de olhos nus, cheios de cores e de água
- …comme ça.
pedindo-me que tos penetrasse com os meus
fundo
num movimento lânguido de pestanas
sem medo
assim
- Oui…
…vien…
… entier…
… doucement…
E eu a ir
inteiro
devagar…
na ponta dos teus dedos, até ao sopro morno da tua boca
- …vien…
ao contacto com o teu hálito doce
- Oui…
enquanto a cabeça te descaia para trás, numa entrega de fêmea completa à verdade do sentir.
E no silêncio quase absoluto daquele quarto alugado, à hora em que o dia é mais belo de cores, e ervas e gatos se confundem com restos de luz, apenas o som dos meus lábios no teu pescoço arqueado, a arrancar-te suspiros em pinceladas suaves de língua, desde a curva ombro ao pego da orelha, onde um expirar mais profundo se desequilibrou de mim e te caiu dentro, enchendo-te o peito; arrepiando-te inteira.
Eras tu agora uma tela em branco, nos meus dedos de marta, mostrando-me verdade
e
num rodar de queixo
a trazeres-me de volta o teu hálito doce, mais quente já, e à boca a tua boca inteira, num beijo inteiro, de língua inteira, lábios inteiros de quem aboca um fruto maduro no prazer lascivo de se deixar pingar
devagar… devagar…
Subiste por mim até se completar o beijo
toda braços e mãos, toda pernas e coxas
e cheirámo-nos como bichos, por entre cabelos e dedos, respirando-nos fundo, até à vertigem dos sentidos
até deslizares redonda, num movimento de gata, para debaixo de mim, levantando os braços lassos
a revelar sombras suaves a carvão
estendendo-te até ao limite de ti; até às pontas pintadas dos teus dedos…
devagar… devagar…
A tua pele de cera, morna, acabada de acender, na maciez do princípio do derreter, a alastrar-se aos poucos, num convite irresistível de
- Põe o teu dedo em mim.
que todas as velas acesas nos parecem pedir.
- …o teu dedo…
na cera morna que se esparge e aquece
- …em mim
devagar…
- Oui…
… doucement…
… doucement…
E de repente
os teus pés uma harmónica de dedos na minha boca, onde cada dedo
cada intervalo
uma nota arrancada ao suspirar mais sincero de ti
e
num tremor suave
quase imperceptível
as tuas pernas a criarem-me espaço no meio de ti
devagar… devagar…
descobrindo aos poucos o abrigo de palha do teu casulo
onde uma borboleta se abria em asas para me revelar o mais íntimo segredo dos teus segredos
- Oui…
…vien…
… entier…
… doucement…
numa voz arrastada e quente que me deixou a razão à beira do abismo
e tu
em espasmos de suplício, mordendo os lábios
depois o pulso
porque um morder mais forte se precisa
a sufocares num grito amordaçado, quando os meus lábios se fecharam num beijo inflamado sobre o princípio do princípio de ti
sorvendo-o
devagar… devagar…
como à pontinha melada de um mindinho.
- Oui…
…vien…
…vien…
…vien…
E eu a ir
inteiro
devagar…
até o tecido dos meus lábios se fundir por completo nas pincelas mais carregadas do teu peito, onde o rosa túmido dos teus pomos e a tumescência da minha boca terminam e começam
e começam, e começam…
devagar… devagar…
E uma linha de saliva a sublinhar-te a curva dos seios, e um arrepio a repuxá-los até ao limite da dor, até ao limite de si.
- Oui…
…vien…
…oui…
E eu todo lábios e língua
todo dedos e mãos
e tu espasmos e humores
dentes e pulsos
nos meus braços; na minha boca; nas minhas mãos tão cheias de ti.
E eu a trepar-te até aos olhos, a mostrar-me nu
na verdade que me pediste
para que o teu quadro não fique sem luz; para que não te custe pintar-me os olhos
a enterrar os dedos no intervalo dos teus dedos
e dedos com dedos
olhos com olhos
a entrar
devagar…
na suavidade da cera morna do princípio do princípio de ti
onde já vela alguma
mas uma fogueira imensa consumindo toda a lenha do meu corpo, fazendo-o suar toda a verdade de mim: até ao fim do ar; até ao fim dos olhos; até ao fim…
do silêncio que sobra das bocas amassadas pela vontade de que o tempo pare para sempre
ali
enviusado nos restos dos estores, com vista para as ervas penduradas daquela janela que se confunde com as traseiras empenadas do dia, onde o langor da luz amorna a pensão dos gatos
ali
até ao requebrar do corpo; ao encaixe perfeito, num enrolar de ouriços acabados de nascer; até ao adormeceres-me nos braços, entregue, completa, cheia de verdade
de mim
num ronronar de bicho feliz.
Ali
até eu à tua volta
todo
à tua volta
pleno
de ti
a adormecer de olhos fixos naquela janela empenada, vendo o último raio de sol entrar, pelo canto enviusado do estore, indiscreto, lamber-me os olhos na tela, e enroscar-se aos nossos pés, lânguido, manso, como um gato de luz.
5 comments:
Que saudades dos teus olhos ao fim da tarde!!! Àquela hora em nada mais se confunde contigo...
Só tu poderias escrever assim.
Parebéns!
arrojado sem duvido, mas frio...
ou melhor demasiado carnal..
Parece-me que as pontas dos dedos dele escreviam no corpo dela palavras que só ela sabia ler...
Estou viciada em tudo o que escreve. Obrigada por existir!
Rosa
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