Hoje arranquei um dente. Pela primeira vez em quarenta e quatro anos arranquei um dente. E tive a sensação de que era o princípio do fim. Um pedaço de mim a menos
morto
no balde do dentista
como se
- Um dente podre, amigo, o que é que lhe quer fazer? Um funeral de estado?
importância alguma.
E no seu lugar um pedaço de algodão. Dor nenhuma, porque
- As coisas que não existem não doem!
a dona Ermelinda
minha mãe
a dizê-lo ao telefone de olhos inchados, para a minha avó Ernestina
para a dona Laura: uma amiga
para a minha tia Ema e sua madrinha de casamento
com a voz mais convincente do mundo
apesar dos olhos inchados
que
- As coisas que não existem não doem!
no dia em que o meu pai “se pôs à sombra”.
nas palavras da minha mãe
dona Ermelinda
ao telefone
olhos inchados…
O que faz com que, dor nenhuma
Um pedaço de algodão apenas. Para estancar o sangue; para evitar a língua cair de joelhos, em prantos, a prestar homenagens de viúva à campa do falecido dente.
Dizer com isto que
dor nenhuma
apenas na alma
(o que não é bem dor
angústia, talvez)
porque a morte mais perto.
- Isso agora põe-se aí um pivot e pronto. Está como novo!
Como novo
diferente de
igual
diferente de
novo
apenas
como se…
E porque uma espécie de luto
(idiota, talvez)
mas ainda assim uma espécie de
…
tirei o resto da tarde. Embora apenas
um pedaço de mim a menos
morto
no balde do dentista
como se
- Um dente podre, amigo, o que é que lhe quer fazer? Um funeral de estado?
importância alguma.
Conquanto
o principio do fim
como se eu todo um dente
- …podre, amigo…
como se
importância nenhuma
como se não uma parte de mim, mas uma coisa sem monta.
- Um dente podre, amigo, o que é que lhe quer…
E sem saber como
porque contra a minha vontade
eu na Alexandre Herculano, onde a Alda me tinha dito que
- Olha, o prédio onde os teus avós moravam foi deitado abaixo.
e eu jurado não tornar a pôr lá os pés. Pois sem o prédio dos meus avós, aquela rua, coisa nenhuma. O princípio do fim. Um pedaço de mim a menos
morto
no balde do dentista
como se
- … podre, amigo, o que é que lhe quer fazer?
importância alguma.
- Um funeral de estado?
E sem saber como
porque contra a minha vontade
eu lá, a meio da rua, onde nada havia já de mim
porque a rua toda uma boca falsa
cheira de pivots
- … e pronto. Está como novo!
Como novo
diferente de
igual…
apenas
como se…
e de facto lá estava o prédio que não estava lá. Tal como a Alda
- …foi deitado abaixo.
me tinha dito.
Apenas o espaço que ocupara um dia
a minha infância toda
como a minha boca toda
eu todo, aquele dente de quatro andares com vista para a Avenida.
Uns tapumes à volta
um pedaço de algodão
para estancar a raiva; para evitar de eu
como a minha língua
cair de joelhos, em prantos, a prestar homenagens de viúvo à campa do falecido prédio.
Portanto
uns tapumes à volta, e um AVISO
nos termos do nº1 do artigo 78 do Decreto-Lei
patatí patatá
tornando público que a Câmara Municipal deu alvará à construtora Pardais ao Ninho para que ali se construísse um pivot
- …como novo!
numa linguagem de legislodontologista
- Isso agora põe-se ai um pivot e pronto. Está como novo!
como se um prédio novo
um dente novo
pudessem trazer-me a infância de volta.
E ali me deixei de olhar vazio
de ombros caídos até aos tornozelos
a olhar o vazio que era aquela rua
como a minha boca
desdentada
porque um dente
como um prédio da nossa infância
a rua inteira
a boca inteira
do princípio ao fim
(o princípio do fim)
num enfileirado de cimento e esmalte.
E nisto a língua a desfazer-se do algodão
(como eu me queria desfazer dos tapumes e do AVISO
nos termos do nº patatí do artigo patatá do Decreto Municipal tornando Lei o alvará dos pardais para que ali se construísse um ninho público à Câmara pivot da construtora)
e a cair de joelhos, em prantos, a prestar homenagens de viúva à campa do falecido dente que
como o prédio dos meus avós
já lá não há.
E eu
como a minha a língua triste
a tactear com os olhos o buraco
(como as mãos da dona Ermelinda
minha mãe
o buraco deixado pelo meu pai no colchão do quarto.
Dor nenhuma, porque
- As coisas que não existem não doem!
quanto muito um vazio imenso
que talvez não seja bem dor
moinha
quiçá
um aperto cá dentro, como um sufoco, uma angústia no estômago…)
com os olhos
dizia
como a língua
a tactear o buraco do prédio que, como o meu dente, foi arrancado da boca da rua da minha infância.
1 comment:
Parabéns pela forma como escreve.
Este post, em particular, divertiu-me bastante :)
Não posso é deixar de lhe dizer que nesse caso não precisa de um pivot, mas de um implante, pilar e coroa. Coisa para se resolver com 1500 Euros! :)
Leonor (sou dentista mas prefiro construir sorrisos a demolir bocas :)
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