- Próxima estação: Alverca
A voz metálica da gravação a despertar-me da dormência, a sacudir-me do sonho como quando em criança a minha mãe
- Diamantino.
como um alicate para um dente podre
de sono
- Diamantino.
ou
- Próxima estação…
E eu a pôr-me de pé; a andar para a porta, sonâmbulo, atrás dos demais sonâmbulos numa fila de patos marrecos rumo à plataforma da estação
ao lavatório, porque
- Diamantino.
ou
- …Alverca.
de pé, a arrastar-me para fora dos lençóis; da carruagem de flanela, com o sono pendurado nas pálpebras, como o cinzento do fim da tarde, quando Março, e os dias a morrerem quando eu a chegar a
- …Alverca.
Antes chegar de noite! Agora àquela hora; limbo indefinido de angústia e frustração; nem dia nem noite, tal como a minha existência que nem vida nem morte. Uma coisa esquisita, à qual
(porque não sou bom a dar nome às coisas)
não sei o que chamar. E porque
- …Alverca.
Arrasto-me para fora da carruagem
da cama
numa fila de patos marrecos com
- Atenção à distância entre as portas e a plataforma!
na voz metálica da gravação que
- Diamantino.
como quando em criança a minha mãe
- Próxima estação…
e eu a abandonar a estação; o meu quarto, na dormência dos dias em que se tornou a minha vida,
cinzenta
cinzentos
como os dias em Março àquela hora
nem vida nem morte
limbo indefinido de angústia e frustração
e os pés rumo a casa, num plec plec de patinhas a ganharem membranas entre os dedos
plec plec
numa distância não maior que a
- … entre as portas e a plataforma!
Um pulinho:
Duas ruas e um largo
já ali
embora eu, cansado
a perder o fôlego
só de pensar na cave, onde há vinte anos, eu e a Júlia
na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, nas unhas dos pés crescidas e nos sovacos de quinze dias, porque os pormenores crescem em razão directa aos afectos.
A porta do prédio; o molho de chaves
O som de todos os dias a sair-me do bolso agarrado a uma rodela de estanho, onde um Santo António há muito perdeu a tinta e a paciência para me proteger. Um lance de escada. Para baixo; sempre para baixo e o cheiro do prédio a abraçar-me, como a um filho desalentado; mutilado numa guerra de todos os dias no ultramar de
- …Alverca.
E por falar em filho
o Diamantino José desde Setembro a estudar no Algarve
esperançado num futuro que o livre de
- …Alverca.
que o livre de
andar para a porta, sonâmbulo, atrás dos demais sonâmbulos numa fila de patos marrecos rumo à plataforma da estação
um curso que não entendo
- Bioquímica, pai.
da mesma forma que não entenderia
- Pedagogia do tecto falso…
- Aerodinâmica contextual…
ou
- Reprodução nuclear oceânica, pai.
E por isso também
(ou acho que por isso também)
porque
desde Setembro a estudar no Algarve
o Diamantino José
- Bioquímica, pai.
por falar em filho
- Bioquímica, pai.
(quantas vezes ainda será preciso repetir?)
por isso
também
(ou acho que por isso também)
o cheiro do prédio a apertar-me ainda mais, como os braços peganhentos de uma tia velha; como uma boca que nos enjoa mas insiste em falar connosco…
e o estômago
embrulhado
quase do avesso, porque rissóis de camarão. De certeza que de camarão
a avisarem-me por debaixo da porta:
- … de camarão…
- Diamantino.
Arroz de cenoura, uma cervejita, pão e queijo; uma peça de fruta. Maçãs. Posso jurar que maçãs.
E a chave à porta, como uma mauser apontada ao umbigo de um oponente. A televisão a chegar-me aos ouvidos na volta da chave
hesitante, contrariada
(a chave)
e um “boa-noite” maquinal e um maquinal beijo a vir-me à cabeça
o estômago embrulhado, quase do avesso
como há vinte anos
A voz metálica da gravação
anunciando
- Até ao último dia das vossas vidas.
ou talvez
(porque há muito tempo)
- Estação terminal.
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