Friday, September 15, 2006

Uma questão de vocação!

O senhor Mário a explicar-me matemática,

equações talvez

não sei dizer. Acho que nunca aprendi nada em matemática. Mas equações, talvez. É disso que trata a matemática, não é? Não sei… nunca aprendi nada em matemática. Mas o senhor Mário a explicar-me matemática, de cigarro na boca,

nunca tirava o cigarro da boca

para quê tirar o cigarro da boca se

tirar o cigarro, voltar a pôr o cigarro

na boca

o senhor Mário a descobrir-me a vocação sem querer, com gravidade na voz, como um Newton

com a cinza a cai-lhe do cigarro, para cima da mesa da marquise, sem gravidade, onde eu

talvez equações. Não sei dizer.

sem sacudi-la para o chão

a dizer:

- Eh pá, que linha tão direitinha!

Quando eu

a fazer simplesmente um risco, furioso, frustrado, para separar os exercícios,

equações talvez. Não sei dizer. Acho que nunca aprendi nada…

simplesmente um risco, furioso, frustrado

não para separar os exercícios, as equações talvez … mas porque não futebol no Domingo à tarde, como os outros que sabiam tanto de matemática como eu.

- Eh pá, que linha tão direitinha! - admiradíssimo - Nunca consegui fazer uma linha tão direita na vida!

E o senhor Mário com uma vida longuíssima, com tempo de sobra para futebol e matemática, enquanto eu, pouco tempo, muito pouco tempo. Porque o tempo que conta é aquele que passou e não o que ainda está para vir. Porque se eu morresse de fúria, de frustração, eu

menos tempo que o senhor Mário.

Cada incógnita um passe atrasado, cada algarismo um golo por marcar, cada sinal de igual uma diferença incalculável no tempo que se apagava diante da minha borracha exausta porque

… nunca aprendi nada em matemática.

ainda que

o Senhor Mário, com uma vida longuíssima, com tempo de sobra para futebol e matemática. Equações, talvez. Não sei dizer. Mas isto sou eu a fazer contas ao tempo e contas não é comigo. Acho…

um risco

muito pouco tempo

E o senhor Mário com uma vida longuíssima. Admiradíssimo, como eu em relação aos exercícios que ele conseguia estender ao longo da folha, numa sequência interminável de confusão, um caos a expandir-se no universo da folha, como a massa dos rissóis da minha tia Adelaide.

Acho que a minha tia Adelaide fazia rissóis. Não sei dizer. Acho que nunca…

Colocar números e letras à sorte na folha também eu sou capaz de fazer, na mesma lógica de raciocínio que a minha avó em relação às cantoras de ópera ou do meu avô em relação aos quadros do Picasso.

Aquilo também eu sou capaz de fazer.

- Eh pá, que linha tão direitinha! - admiradíssimo

de cigarro na boca

para quê tirar o cigarro

- Faz lá outra. - expectante. Como se estivesse de repente diante de um génio.

- Faz lá outra.

numa inversão de papéis

e eu a fazer outra, igualmente direita

igualmente

- Eh pá! - envolto no fumo do cigarro, de olhos pequeninos, talvez porque o fumo do tabaco

e os exercícios a ficarem por ali, porque algo mais interessante

- Eh pá!

do que

equações, talvez. Não sei dizer. Acho que nunca aprendi nada em matemática.

porque algo mais interessante

linhas direitas; um risco, furioso, frustrado, para separar os exercícios

equações

e eu a entusiasmar-me e a fazer mais uma e outra enquanto

- Eh pá!

uma e outra, até que

a limonada da dona Helena

- Limonada para os meninos! - doce, apesar do limão. Doce porque a voz da dona Helena

- Limonada para os meninos!

porque a voz da dona Helena a tratar-me por você. Sempre por você, ainda que eu apenas treze anos

sempre

- Tome. - de copo na mão, de limonada

doce

sempre por você, apesar do limão

ainda para mais agora que eu era um génio do traço

- Tome!

como se dissesse

- Senhor

E eu a responder com um traço

não com um obrigado

apenas um traço em jeito de autografo para a posteridade.

Com o senhor Mário

- Ó Helena, olha lá para isto. Este gajo é fantástico!

embora a dona Helena sempre

você

apesar de

- Este gajo… - ou do limão.

- Nunca consegui fazer uma linha tão direita na vida! - até ao fundo do copo

até amanhã

até ao saltar do muro para o meu quintal… muro que parecia agora não ter mais de um palmo de altura, porque eu

- …fantástico!

- … tão direitas…

a esquecer-me do futebol, da matemática; a sentar-me na mesa da sala a replicar os exercícios, um atrás do outro, até a minha avó

- Anda lanchar.

não você

- Anda lanchar.

agora que eu era um génio do traço

não você

somente

- Anda lanchar.

e eu

- Já vou. Estou a acabar uns exercícios. - e nada era mentira. Uma folha, cinco, sete, cheias de linhas

- … tão direitas…

já não frustrados, porque eu

- …fantástico!

porque a minha vocação… descoberta.

Passaria a vida a fazer riscos direitos e não precisaria de matemática para nada, nem do futebol. Pois há tanta ciência num risco direito, como no cálculo de integrais, ou o senhor Mário nunca teria dito

- “Este gajo é fantástico!”

3 comments:

skin - flesh -blood said...

mt bom...já tinha saudades ;)

MYTHOS said...

ter o "querer" mas não o "poder" é triste, vice-versa também. ter o "querer" e o "poder" ao mesmo tempo é raro. não ter nenhum é o fim...

P.S. temos de ir ao cinema um dia destes dar uso ao KK

Bruno Renato said...

Gostaria de deixar um "comment" mas esse nao sera meu, e dito isto, i'll quote: "- Ó Helena, olha lá para isto. Este gajo é fantástico!"

P.S. Obrigado pelo Paquito e pelo Alchito!e por todos os outros!