Wednesday, February 01, 2006

Só mais um pouco…

Os primeiros ameaços de luz entravam agora pelas últimas frestas dos estores, que nunca conseguíamos fechar completamente, e eu sentia o frio daquela manhã de Novembro entrar-me na alma sem convite, puxar uma cadeira e sentar-se. Aos poucos, o teu corpo foi ganhando cor e as unhas cinzentas dos teus pés eram já vermelhas. Fixei os olhos nelas e deixei-me ficar mais um pouco, encostado à almofada de penas que a tua mãe nos tinha oferecido. Só mais um pouco!

Adorava esses dedos bobos, encarapuçados de vermelho, como fantoches animados no pequeno palco dos teus pés. E eu que odiava verniz vermelho… e eu que adorava tudo em ti! Só mais um pouco!

Dormias tranquila, na cama que durante um ano e meio foi de nós dois, sem imaginar que fosses acordar sozinha e para sempre. Tive pena, ao imaginar o teu rosto trémulo ao acordar. Pena de nós. Pena de tudo quanto fomos se espraiar como uma onda de espuma sobre o areal morno da praia; um lençol de cetim branco a tomar a forma morna do teu corpo dormente. Só mais um pouco!

Não preguei olho durante a pouca noite que ainda nos restava para dormir. Tinha medo de adormecer e acordar depois de ti, e das torradas com sumo de laranja que fazias sempre depois de cada reconciliação. E eu estava cansado das nossas torradas com sumo de laranja! Tinha medo de não conseguir resistir mais uma vez às formas perfeitas desse teu corpo de mel, que dispensava qualquer movimento para me vencer; desses teus olhos de oceano profundo tentando-me a mais um mergulho de perder o fôlego. Tinha medo de me faltarem as forças para chegar a terra; de nunca mais conseguir voltar à tona. Só mais um pouco!

Um raio de sol mais ousado incendiou-te a curva do joelho, onde terminava a depilação e começavam os pêlos louros que me deixavam completamente fora de mim. Pormenores. E tu eras uma montanha de pormenores! Mas eu tinha de ir. Tinha-me jurado que seria a última vez; que não haveria mais volta; não mais discussões; chantagens emocionais; não mais desconfianças e cenas de ciúme; não mais reconciliações como esta… não mais torradas com sumo de laranja! Só mais um pouco!

A barriga grávida da tua perna descansava de lado, fora do lençol, numa imóvel dança do ventre, absorvendo a fraqueza dos meus olhos para ti. E eu lembrava-me da primeira vez que as vi, nas tuas calças bege à pirata - corsário, dizias tu - numa esplanada do Chiado, quando esperavas por uma amiga que nunca chegou a aparecer. Apaixonei-me de imediato por elas e depois por ti, e amei-te até à rendição, nessa noite, ainda em casa dos meus pais. Tinhas uma voz rouca, que me deixou inseguro, e fizeste questão de me pagar o café, sob o pretexto de precisares de dinheiro trocado para a máquina do tabaco. Como que para não te sentires frágil. Como que para não te sentir fácil. Como que para não me sentir o máximo. Como que para me fazeres sentir real... apenas eu.

Já tinha pensado ir e nada havia que me fizesse mudar de ideias. Tinha-o decidido antes. - Canalha! - por outras palavras, dirias tu, se to dissesse. Mas eu queria que acabasse em beleza. A mania da perfeição! Queria que ficasses com uma boa impressão de mim: a melhor das nossas noites de amor. Como se isso fosse aquilo que mais te importasse no acordar frustrado da minha ausência. Que pretensão esta que nos advoga o direito de decidir pelo outro! “Eu vou-me embora, mas ela nunca se há-de esquecer de mim!” Como se o melhor de mim fosse uma boa memória, ou uma noite de amor sem retorno. Nós homens vamos mil vezes embora, e mil vezes com a certeza de que é para sempre. Vocês vão apenas uma, a derradeira das mil e uma noites, num fechar de livro sobre a última página da história. Talvez por isso esteja a demorar tanto a ir. Só mais um pouco!

Não sei porque pensei nisso, se tudo estava já tão decidido! Tive medo! Talvez um medo antecipado de arrependimento. Talvez o medo de já te ter abandonado mil vezes e não as ter contado bem. Medo! É só isso que nos faz ficar mais um pouco debaixo do lençol da frustração. Medo, porque sou um homem e não um personagem de ficção. Medo de que quisesse voltar e a porta da tua vida tivesse mudado de casa. Por isso… só mais um pouco!

Moveste-te e passaste um braço mole por cima do meu peito, mas com força suficiente para me agarrar ali mais um pouco... só mais um pouco. Também eu estava cansado. Também eu precisava de uma desculpa para ficar só mais um pouco… mais uma vez. Aninhaste-te em mim, encaixei-te no meu corpo à tua medida; tive um raro arrepio de felicidade, fechei os olhos e disse baixinho, enquanto te beijava as pálpebras tranquilas: - Só mais um pouco! - como se tu me tivesses pedido alguma coisa.

4 comments:

Anonymous said...

ha quem diga que o tempo é um carro novo sem a marcha atrás...

beijo

Anonymous said...

é sem dúvida um dos teus textos de que mais gosto, gosto da forma como nos fazes viajar, da forma como nos agarras sem escapatoria possivel. todos eles tem algo que nos prende e faz com que o fim seja rapido demais.

Anonymous said...

Decidi deixar aki o meu comment sendo esta cronica minah favorita..talvez porque me identifiquei com ela numa altura da minha vida em q isto me estava a acontecer....e hoje vejo com lucidez...adoro esta cronica sem duvida...e continua a brindar nos comestes rasgos brilhantes..tocantes inteligentes...que so tu consegues ....

Anonymous said...

eu sou apaixonada por esta historia. já há muito tempo que não a lia, mas lembro-me perfeitamente a primeira vez que a li, em papel... este dom de por nas palavras aquilo que se sente, faz reviver tantos momentos, bem como, pensar "olha consegue-se escrever sobre aquilo que senti...."
joca