Friday, September 12, 2008

Há dias…

Há dias, como hoje, em que não sei o que faça da vida… e não faço nada. Não por inércia, não por inépcia, senão por não ter vida nesses dias e portanto não saber o que lhe faça. Parece que acordo cansado, como quem desperta de uma morte clínica, de um longo sono, de um desmaio ou de uma distracção provocada pelo tédio de não ter vida
ou sentido para ela
que vai dar ao mesmo
ao Tejo
ao mar
ao fim do mundo.
Há dias em que um revólver não bastaria para pôr termo à existência. São os dias em que a vida é um fantasma… e os fantasmas não morrem a tiro. Sabemo-lo desde a cama de grades.
- E os que não tiveram cama de grades? - perguntarão os que não tiveram camas de grades
- Que se fodam os que não tiveram cama de grades!
Portanto
desde a cama de grades que
(sabemos)
não morrem a tiro
os fantasmas
Morrem num raspar de fósforo pela lixa, num clic de lanterna, num golpe de interruptor… morrem quando se faz luz; como o desespero das ideias falhas, que é o fantasma de não alcançar resposta, como eu, nos dias em que não sei o que faça da vida, porque a não tenho.
É preciso luz para afastar os fantasmas. Foi o que Deus fez para afastar os seus. Que Deus não era senão um menino perdido no meio de um quarto escuro, borrado de medo. Acendeu o candeeiro
Electrosónico já
sensível à voz da criança
(desmembrada de nascença)
programado
(o candeeiro)
para acender quando o pequeno
- Faça-se luz.
Achou-lhe graça e seguiu ditando ordens. Passou-lhe o medo
o sono
e criou montanhas e rios e árvores e flores e bichos e um papá e uma mamã e brincou com eles. Que os meninos sem braços tem muita imaginação.
Era ele agora quem mandava. Ele agora quem ditava leis. Ele agora quem dizia: aqui pode-se, aqui não. Essa árvore é minha e vocês não pode mexer. E os papás andavam nus, como ele sempre quisera ver. E os papás fraquejaram, como ele sempre quisera ver. E os papás cometeram delito, como ele sempre quisera ver. E os papás teriam de ser castigados, como ele sempre quisera ver. E os papás foram expulsos de casa, como ele sempre quisera ver. E os papás morreram de fome e de frio e de dor e de velhos e de tristeza, como ele sempre quisera ver. Que os meninos sem braços são “mais maus” que os outros meninos.
Depois a brincadeira perdeu a graça, mas era tarde, já, para os trazer de volta, pois tal com há dias em que um revólver não bastaria para pôr termo à existência, outros dias há em que adormecer e acordar não chega para corrigir o acontecido. E por isso Deus chorou, revoltado
não consigo
claro
que era perfeito
apesar de desmembrado
(são sempre perfeitos os aleijadinhos
coitadinhos dos aleijadinhos
sempre desculpabilizados, os aleijadinhos
não fazem por mal
os aleijadinhos
temos de compreender os aleijadinhos…
Puta que os pariu
aos aleijadinhos)
de modo que
(não consigo)
revoltado
com os pais, por terem morrido.
E quis partir coisas
mas não tinha bracinhos
e quis arrepelar os cabelos
mas não tinha bracinhos
e chorou de raiva
formou dilúvios
atirou-se ao chão, mordendo a alcatifa do paraíso, como quem quer ferrar o mundo inteiro e a boca não lhe chega
e chorou, e chorou, e chorou… mas não havia papás para lhe aparar as lágrimas, ninguém. Viu a caixinha da plasticina
alcançou-a com os pézinhos
e procurou fazer mais gente
diferente
diferente
sempre diferente
mas não eram os seus papás
eram bonecos vazios, descarregados de emoção, de amor, como eu de vida
certos dias
como hoje
em que não sei o que dela faça, e por isso…
e por isso acabo por não fazer nada, porque isto que aqui se passou, foi
diga-se
rigorosamente nada.

3 comments:

vero said...

Olá boa noite,
em primeiro ligar quero dar-lhe os parabéns pelo seu livro, que tenha muita sorte e sucesso.
tive o prazer de "descobrir" hoje o seu livro numa livraria que por acaso não conhecia, não tive oportunidade de o adquirir hoje mas irei fazê-lo. Já agora chamo-me Verónica Mendes editei em 2007 o meu primeiro livro de Poesia com a Magna Editora ( com a qual estou muito satisfeita) de nome "Fiz-te Poema!", participei numa colectânea com outros 99 autores " Nas Águas do Verso" que saíu recentemente e neste momento estou a terminar um romance baseado em alguns acontecimentos verídicos e que espero ser editado em breve. No entanto gostaria de "tentar a sorte" com a Editora Oficina do Livro, e gostaria de saber a sua opinião se fosse possivel. Já tenho editora disposta a editar a minha obra mas a Oficina do Livro também me despertou a atenção. Tenho também um blog onde vou publicando algumas coisas mas está privatizado mas se por acaso gostasse de conhecer agradecia que manifestasse tal interesse aqui no seu blog e eu enviar-lhe -ei um convite.
Peço desculpa pelo incómodo e devo dizer que gostei imenso do que li neste seu "espaço"

Cumprimentos

Verónica

Carlos Garcia said...

Os mais crus são sempre os melhores ;) acaba lá o próximo (um deles pelo menos), só tenho lido cenas mediocres ultimamente.

Kung Lao said...

Mesmo. Há dias que parece que acordamos só para preparar a inércia para o acordar a seguir. Não sei se concordo com o Menino Jesus nisso tudo, mas uma coisa te posso dizer; - Fantasmas ? Foda-se! Ghostbusters!!!