Não sei que horas eram. Era de noite, mais nada. Estava um frio de morte e Janeiro parecia que estava do lado deles. Acordaram-me à bruta e levaram-me para o pátio. Um pátio pequeno, um asilo de loucos para o vento, que não parava quieto de um lado para o outro.
Tiraram-me roupa
um cachaço no pescoço
- Que é para abrires a pestana!
Era hora do suplício. Não sei que horas eram
de noite mais nada
um frio de morte
Janeiro do lado deles
pátio
vento
arrepios e medo
um balde de água gelada pela alma abaixo e
- Como é que é meu rouxinol? Vais cantar ou não?
Tremer, tremer, tremer
medo e frio e morte e vento e Janeiro do lado deles.
Preso há três, quatro dias
(um homem acaba por perder-se do tempo)
e ainda mal tinha pregado olho.
Não sei que horas eram; quanto tempo dormi. Se calhar o tempo apenas de fechar os olhos e o guarda
- Upa, upa, que já é dia!
- Quem mais é que está metido nisto?
Tremer, tremer, tremer
medo e frio e morte e vento e Janeiro do lado deles
e uma bota na pontinha dos pés descalços a arrancarem-me uma confissão de dor.
- Quem mais é que está metido nisto? À terceira respondes sem dentes.
- Não sei. Não sei de nada. Juro que não sei de nada.
nem que horas eram nem a quantos estávamos
perdido, mas tão perdido
e nova pisadela nos pés a poupar-me os dentes por mais um pouco.
- Sete.
a lembrar-me por fim. O cansaço tolda-nos a memória; baralha-nos as noções
- Quê?
- Sete. Estávamos sete.
- Quem eram os outros seis?
- Não sei. Juro que não sei.
Mas um homem, entretanto, acaba por se lembrar. Um homem acaba sempre por se lembrar. Só depende da forma como a pergunta é feita e de quem a faz. Um homem que sabe acaba sempre por responder, mais cedo ou mais tarde
Sempre por responder
Por se ir abaixo
por fraquejar
não é bem fraqueza
é instinto.
Muito aguenta ele!
… há três, quatro dias
(um homem acaba por perder-se do tempo)
a tremer de frio e medo e medo e medo
um homem acaba por se ir abaixo
não é bem fraqueza
depende da forma como a pergunta é feita
eles sabem disso
eles sabem de tudo, muito antes de nós
mas é um desporto como outro qualquer
como o professor Romão, da primeira à quarta classe
- Estica a mão.
para me corrigir a deficiência congénita de ser canhoto.
- Já te avisei que não é com essa mão que se escreve. Hás-de aprender, nem que ta tenha de arrancar.
ciente de que, mais cedo ou mais tarde, haveria de mudar de mão, pois
- A esquerda não serve nem para limpar o rabo!
De modo que também eles
à força de porrada haveriam de corrigir-me o defeito
problema antigo
já o professor Romão
- Cem vezes na ardósia.
…direita, direita, direita, direita…
eu a explicar-lhes
Não é por mal, senhores, nasci assim, que posso fazer. Não se bate nos deficientes.
- Qual deficiência, minha senhora!
o professor Romão para a minha mãe, com pena de mim e da minha mão inchada, mas
- Já nasceu com ele. - minha mãe a argumentar. - Não é por mal. Que quer o senhor professor? Há-de agora castigar-se o rapaz por isso. Não escreve Deus por linhas tortas, também? Porque não poderá ele escrever com a mão canhota que é a mais direita que tem e, justiça se lhe faça, senhor professor, caligrafa melhor que muita direita que para aí há. Não sou eu quem o diz, é o senhor Marcelino.
…
- O da mercearia. - a minha mãe a descuidar-se sem querer, a fazer a cama ao merceeiro, coitado, que não o dizia por mal.
…
Mas há que Deus que é assim! O que pode uma mãe fazer?! O senhor professor é que sabe. Eu não conheço uma letra nem do tamanho de um comboio. Mentira, conheço três
Ana
A minha pobre mãe, até nisso ingénua. Conhecia apenas duas. Duas letritas apenas e tinha o nome escrito, igual da direita para a esquerda e da esquerda para a direita.
Ainda expliquei isso, mas os senhores
que quem está acima de nós é senhor
ou Senhor
a não quererem explicações
nomes apenas
de modo que eu
Rui Gomes; Guilherme Pato; Rosa Fusca; Patrocínio Almeida; João Bolhas e Fernando Lopes.
Um homem acaba sempre por se lembrar. Só depende da forma como a pergunta é feita e de quem a faz. Um homem que sabe acaba sempre por responder, mais cedo ou mais tarde
não é bem fraqueza
é instinto.
1 comment:
Tudo o que escreves tem um espírito acutilante e uma sagacidade admirável, bem visíveis neste texto, aliás. É um prazer ler qualquer que seja o tipo de texto que escreves.Parabéns.
Rosário
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